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sábado, 1 de novembro de 2025

Simples e complicado: nós na tradição ocidental

Fui à Grécia cumprir tributo aos gregos. Lá encontro os atos inaugurais do que a historiografia nomeia Tradição Ocidental. Visitei muitos lugares, porém, os destinos mais pretendidos eram: o recinto onde o bom deus Dionísio ensinou vinho e festa à humanidade; o Oráculo de Delfos, sítio do “Conhece-te a ti mesmo”; um despenhadeiro chamado Termópilas. Ali, só, entrado no mato, prestei reverências a Leônidas I de Esparta; compenetrado, agradeci-lhe pela civilização que me constitui como humano.

Trezentos mil persas chefiados por Xerxes I vinham em vingança, com pretensões de tomar toda a Grécia. Sete mil gregos foram enfrentá-los. A maioria combateu no estreito de Artemísio. Em Termópilas, um ponto estratégico, contudo, fincaram-se setecentos téspios, quatrocentos tebanos e trezentos espartanos. Leônidas comandou-os em resistência por três dias. Foi tempo bastante para a Grécia se organizar, revidar e vencer os persas, bem mais tarde, em Salamina e Plateias.

Isso ocorreu há dois mil e quinhentos anos. Um século e meio depois os macedônios dominaram os gregos, mas a cultura grega subsistiu e desenvolveu-se com o Helenismo. Mais dois séculos e os romanos tomaram o controle da Macedônia e da Grécia. A civilização grega, contudo, emprenhou as instituições romanas. Roma era o mundo. Há 17 séculos, após muita glória e muitos desmandos, o Império Romano viu Constantino tornar-se seu imperador. Constantino fundou a igreja católica.

Há 16 séculos começou a Idade Média: retrocesso social, superstições, penúria, doenças, perseguições. A igreja católica presidiu absoluta o assassinato de cada dissidente e a morte de todas as ideias discrepantes da sua. Há sete séculos o obscurantismo católico foi tocado pelo Renascimento, que recuperava os gregos; a igreja reagiu recrudescendo a violência. Há três séculos os pensadores iluministas começaram a pôr luzes nas trevas que regravam o poder e os detalhes da vida social.

A Revolução Burguesa há pouco mais de 200 anos interrompeu os assassinatos religiosos e garantiu o direito de se ter ideias e de se dizer ideias. A Razão, entretanto, não penetrou desde logo na Espanha, em Portugal e nos países que herdaram sua cultura. Por isso, talvez, há pouco mais de meio século, no Brasil, religiosos católicos e restolhos da Ditadura Militar ainda impunham censura cultural. Quiçá por isso o tão lamentável discurso da presidenta Dilma Rousseff na ONU (2017).

A sua fala: “Como presidenta de um país no qual vivem milhares e milhares de brasileiros de confissão islâmica, registro neste plenário nosso mais veemente repúdio à escalada de preconceito islamofóbico em países ocidentais”. A presidenta embarcou em explicação insustentável: os assassinatos ideológicos de ocidentais que islâmicos praticaram, amparados por discursos rancorosos e obscurantistas – e, suspeito, por logística – de seus governos, são responsabilidade dos EUA. Coisa nenhuma!

“Do alto de seus minaretes, os aiatolás condenam à morte estrangeiros residentes em países estrangeiros por atos cometidos em países estrangeiros e que no estrangeiro não constituem crime. Autoridades islâmicas legislam urbi et orbi e o islã pegou gosto pela abrangência de sua jurisdição.”  Editei e pluralizei o que Janer Cristaldo disse de Khomeini (FSP, 26set12). Em verdade, embalados por fanatismo, islâmicos que vão viver em outras culturas dificilmente deixam de ouvir seus guias morais originários.

Conforme a mesma fonte: “Se migrantes de todos os quadrantes normalmente se adaptam à cultura europeia, há um imigrante particular que não só causa problemas na Europa como quer dominá-la culturalmente. São muçulmanos, que querem instituir no continente suas práticas, muitas vezes tipificadas como crime nas legislações nacionais”. Exagero? Pensa: se encontrares uma mulher com véu por aqui, nada passará; se uma mulher for encontrada sem véu por lá, será apedrejada. Simples e complicado assim.

Essas absurdidades são uma continuação de um antigo conflito de civilizações consubstanciado em guerra religiosa. Não tenho ilusão quanto às intenções dos religiosos muçulmanos (ou de quaisquer outros). Enquanto países ocidentais são lenientes com agressões à sua soberania, felizmente a arte - com sacrifício de artistas - segue em resistência, já, não a católicos, mas a muçulmanos. Tenho, e muita gente tem, medo desses novos cruzados. Creio que isso é sinal de que Leônidas está em perigo.

Este texto eu o publiquei há muito tempo. Retomo-o porque se acirraram no Oriente Médio, por meios brutais, infames, imorais de parte a parte, as belicosidades de fundo religioso. Não sei se existe guerra que não seja brutal, infame, imoral, mas esta que o Irã provocou contra Israel agenciando o Hamas e sacrificando a Palestina foi um dos espetáculos mais hediondos que o mundo talvez tenha acompanhado. Sim, acompanhado, porque divulgado em tempo real nos seus detalhes mais sórdidos.

Está no oráculo dos tempos atuais, o Google: “Existem várias guerras e conflitos ativos atualmente [...] O mundo registrou número recorde de guerras em 2024, o maior desde a Segunda Guerra Mundial. Em 2024 ocorreram 61 conflitos armados em 36 países (Instituto de Pesquisas de Paz de Oslo)”. Alguém discordará da desproporção de notícias comparando-se todas as outras guerras com a da Palestina? Alguém sabe o motivo dessa “preferência” por uma guerra em detrimento de todas as outras?

Quem se preste às contas e às explicações teria que estudar cada guerra, compreender-lhes as razões geopolíticas e ideológicas da “predileção”. Dei-me à pachorra de procurar, ler e ouvir explicações. Nada de conclusivo. Algo interessante: aos europeus, segundo entrevista que conduzi para o Instituto Cidade, preocupa-os a guerra da Ucrânia, não a da Palestina. Leia-se: preocupação com abastecimento energético. E a nós, o que nos conduziu a preocuparmo-nos com outra, com a “nossa” guerra?

Minha hipótese: foi Napoleão Bonaparte mais que do que a Revolução Francesa, embora Bonaparte seja um desdobramento da Revolução, que, força das armas, implantou o Iluminismo na Europa. Contudo, Espanha e Portugal ficaram fora disso. O Iluminismo não alcançou a Península Ibérica com força para marcar a cultura. Resta que somos mais herdeiros ideológicos do catolicismo que das luzes revolucionárias. É com tais “conceitos” que, ainda hoje, tomamos partido nos acontecimentos.

Argumenta-se que o petróleo move a guerra. Embora indícios consistentes de gás natural nas águas de Gaza, o conflito é anterior à sua descoberta e é com os aiatolás do Irã, não com os palestinos. A luta, pois, parece-me, é pelos motivos religiosos que sempre o moveram. E os brasileiros com isso? A direita brasileira, cristã, lê o Israel como terra sagrada. Quanto à esquerda, boa parte tem outra “religião”: professa a crença de que tudo que atinja um aliado dos EUA prepara a “revolução” que derrubará o capitalismo.

A direita religiosa sonha com um retorno ao mundo antigo, um saudosismo de um lugar que só existiu na narrativa católica dos acontecimentos (os demais cristianismos relevantes bebem da mesma fonte). A maior parte da esquerda tradicional, historicamente vinculada ao comunismo real da extinta URSS, cultiva ressentimento por sua causa perdida. A esquerda identitária, originada no liberalismo estadunidense, alicerça seus reclames nos direitos humanos, o que é sempre uma causa respeitável.

A guerra da Palestina nos interessou particularmente, portanto, por nossas próprias posições ideológicas, sejam as de fundo religioso, sejam as de fundo “revolucionário”. Saudosismo e ressentimento movem as paixões mais exaltadas. Posso ser contestado com o válido argumento de que a guerra é recriminável em si mesma. Concordo desde logo. Porém, contesto: todas as guerras são recrimináveis, e repergunto: por que uma das tantas guerras que estão pelo mundo nos toca particularmente?

Há muitas expressões civilizatórias. É complicado hierarquizá-las em termos morais. Eu não ousaria ditar modos de estar no mundo a ninguém. Todavia, meço e defendo os modos políticos de organização social com alguns critérios. Do que objetivamente dispomos, empresto maior valor à democracia republicana laica, depois, a outras formas democráticas, a seguir, já com desgosto, a monarquias democráticas. Não me confortariam os modos de uma teocracia; acho triste um país que tem dono.

Fico com a Tradição Ocidental, não obstante os seus tantos defeitos. Protesto que é injusta, porém, só cabe propor revisão, melhora e superação porque trata-se de uma tradição que aceita crítica e se critica. A crítica abre todos os caminhos, inclusive os revolucionários. O silêncio social imposto em ditaduras de intérpretes de comandos divinos nega a História, que só se realiza onde há movimento nas maneiras de se viver em comum. Não sei se estou certo, mas este me parece um modo Leônidas de pensar. 



Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC
Psicanalista e Jornalista


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