A Associação Médica Brasileira, através da sua Comissão de Combate ao Tabagismo vêm a público rejeitar a proposta do Deputado Federal Kim Kataguiri (SP), que em rede social, se posiciona favoravelmente à liberação do uso dos cigarros eletrônicos no Brasil e relata ter apresentado um Projeto de Lei neste sentido.
A
Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (RDC - ANVISA) Nº 46 de 28/08/2009 proíbe a comercialização,
importação e propaganda de quaisquer Dispositivos Eletrônicos para Fumar (DEFs)
no Brasil, como cigarros eletrônicos e outros, especialmente os que aleguem
substituir os cigarros e demais produtos convencionais do tabaco ou objetivem
alternativas ao tratamento do tabagismo1.
Apesar da
proibição, o percentual de experimentação e uso dos referidos dispositivos vem
aumentando significativamente no país, como mostram os resultados de algumas
pesquisas. A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar de 2019 (PeNSE, 2019)
mostrou que 16,8% dos escolares de 13 a 17 anos já haviam experimentado o
cigarro eletrônico (sendo 13,6% nos de 13 a 15 anos de idade e 22,7% nos de 16
e 17 anos) e o consumo nos 30 dias anteriores à pesquisa foi de 2,8%2. Na
Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 (PNS, 2019), a prevalência atual do uso dos
Dispositivos Eletrônicos para Fumar entre indivíduos de 15 anos ou mais foi de
0,64% (cerca de 1 milhão de indivíduos), sendo aproximadamente 70% na faixa
etária entre 15 e 24 anos de idade3.
A
maioria absoluta dos DEFs contém nicotina - a droga psicoativa responsável pela
dependência química. Nos cigarros eletrônicos, ela se apresenta sob a forma
líquida, com forte poder adictivo, ao lado de solventes (propilenoglicol ou
glicerol), água, flavorizantes (cerca de 16 mil tipos), aromatizantes e substâncias
destinadas a produzir um vapor mais suave para facilitar a tragada e a absorção
pelo trato respiratório. Foram identificadas, até o momento, cerca de 80
substâncias nos aerossóis, sendo muitas delas tóxicas e
cancerígenas4,5,6.
O
cigarro eletrônico em forma de pendrive e com USB entrega nicotina na forma de
“sal de nicotina”, algo que se assemelha à estrutura natural da nicotina
encontrada nas folhas de tabaco, facilitando sua inalação por períodos maiores,
sem ocasionar desconforto ao usuário 5.
Em 2018, os fabricantes do cigarro eletrônico no formato de pendrive lançaram
no mercado dispositivos para recarga dos cartuchos – os “pods” com
concentrações entre 3% a 5% de nicotina7 . Cada pod do cigarro eletrônico no
formato de pendrive contêm 0,7 ml de e-líquido com nicotina, possibilitando 200
tragadas, similar portanto, ao número de tragadas de um fumante de 20 cigarros
convencionais. Ou seja, podemos afirmar que vaporizar um pendrive equivale a
fumar 20 cigarros (1 maço).
Além
da nicotina, os pods também contêm uma mistura de glicerol, propilenoglicol,
ácido benzoico e flavorizantes 8 . Eles podem ser manipulados e preenchidos com
outras substâncias como o tetrahidrocanabinol (THC) - principal substância
psicoativa da maconha.
Uma metanálise e revisão sistemática, publicada em 2020, demonstrou que o uso
de cigarros eletrônicos aumentou em quase três vezes e meia o risco de
experimentação do cigarro convencional e em mais de quatro vezes o risco de
tabagismo9. Estudos epidemiológicos em vários países mostram que o uso
concomitante dos DEFs com os cigarros convencionais é muito comum (uso dual)10.
Entre
agosto de 2019 e fevereiro de 2020, ocorreu um surto de doença pulmonar aguda
ou subaguda grave denominada EVALI (E-cigarette or Vaping product use-Associated
Lung Injury), em usuários de cigarros eletrônicos (jovens em sua maioria),
tendo sido notificados 2.807 casos nos EUA, com 68 mortes confirmadas11.
O
Deputado Kim Kataguiri não considera justificativa para a proibição o fato
desses dispositivos fazerem mal à saúde pois, segundo suas palavras, “os
indivíduos devem ter liberdade para determinar a sua vida e a sua própria
saúde”. Além disso, alega que estudos científicos, especialmente os do sistema
de saúde inglês, demonstram que os cigarros eletrônicos são mais saudáveis do
que os cigarros convencionais.
Como
falar em liberdade com o uso de uma droga psicoativa pesada como a nicotina,
que torna a maioria de seus dependentes cativos da indústria do tabaco pelo
resto de suas vidas e os levará ao adoecimento e morte prematura? Esta
indústria perversa agora demoniza o outrora glamourizado cigarro convencional e
vem afirmando que os DEFs são úteis na tentativa de cessação do tabagismo ou na
redução do consumo de cigarros - a chamada Redução de Danos.
Em
seu informe de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou não haver
suficientes evidências científicas independentes para respaldar o uso dos
cigarros eletrônicos como uma intervenção para a cessação do tabagismo em nível
populacional ou para ajudar as pessoas a deixarem o consumo convencional do
tabaco e assinalou que estes produtos são indubitavelmente maléficos. O mesmo
informe concluiu também que as evidências não mostram que os produtos do tabaco
aquecido reduzirão as doenças relacionadas ao tabaco12.
A União Internacional contra a Tuberculose e Enfermidades Respiratórias (The
UNION),em sua 4ª declaração sobre os cigarros eletrônicos, publicada em 2020,
coloca-se de acordo com a posição da OMS e ressalta a importância da divulgação
do impacto dos DEFs na saúde pública, não só nos países de alta renda mas
também naqueles de média e baixa renda, onde estão sendo introduzidos e
comercializados de forma agressiva, geralmente com pouco ou nenhum marco
regulatório e onde os jovens são particularmente vulneráveis. Por estas razões,
a entidade recomenda que sejam adotadas políticas de proibição de vendas,
que são protetoras e preventivas13.
Os interesses da saúde pública e os
interesses da indústria são irreconciliáveis e a relação deve ser pautada pelos
ditames da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, o 1º Tratado
Internacional de Saúde Pública da História da Humanidade, cujo objetivo principal é preservar
as gerações, presentes e futuras, das devastadoras consequências sanitárias,
sociais, ambientais e econômicas do consumo e da exposição à fumaça do
tabaco14. Este tratado foi elaborado sob os auspícios da OMS, assinado pelo
Brasil em 16/06/2003, ratificado pelo Congresso Nacional em 27/10/2005 e pelo Presidente
da República em 03/11/2005 em vigor no Brasil desde 01/02/2006 como
política pública de Estado.
A AMB e suas sociedades afiliadas apoiam a
manutenção da RDC ANVISA n.46/2009 da ANVISA, que sabiamente contempla todos os
dispositivos eletrônicos para fumar com o objetivo de impedir a propagação do
uso desses produtos, especialmente para a juventude, como forma de mudar este
cenário cruel e inexorável de adoecimento, sequelas e mortes causado pelo
tabaco, nas suas mais diversas formas e disfarces para consumo.
Referências
1. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (Brasil). Resolução RDC n. 46, de
28 de agosto de 2009. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 de ago. 2009.
2. Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar : 2019 / IBGE, Coordenação de
População e Indicadores Sociais. – Rio de Janeiro : IBGE, 2021. 162 p. : il.
3. Pesquisa Nacional de Saúde : 2019 : Percepção do Estado de Saúde, Estilos de
Vida, Doenças Crônicas e Saúde Bucal : Brasil e
grandes regiões / IBGE, Coordenação de Trabalho e Rendimento.
(- Rio de Janeiro : IBGE, 2020. 113p.
4. Ministério da Saúde. INCA/ANVISA. Cigarros eletrônicos: o que sabemos. 2016
5. Ministério da Saúde. INCA. Alerta do Instituto Nacional de câncer José
Alencar Gomes da Silva – INCA – sobre os riscos dos dispositivos eletrônicos
para fumar
6. WHO report on the global tobacco epidemic 2021: addressing new and emerging
products
7. Romberg AR, Miller Lo EJ, Cuccia AF, Willett JG, Xiao H, Hair EC, et al.
Patterns of nicotine concentrations in electronic cigarettes sold in the United
States, 2013-2018. Drug and Alcohol Dependence. 2019;203:1-7. Disponível em: http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0376871619302571
8. What is JUUL Vape Juice? | Learn about JUUL pods Flavors | JUUL . Disponível
em: https://www.juul.com/resources/What-is-JUUL-Vape-Juice-All-JUUL-PodFlavors
9. Barufaldi LA, Guerra RL, Albuquerque RCR, et al. Risco de iniciação ao
tabagismo com o uso de cigarros eletrônicos: revisão sistemática e metanálise.
Cien Saude Colet [ internet] (2020/Out). Disponível em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/risco-de-iniciacao-ao-tabagismo-com-o-uso-de-cigarros-
eletronicos-revisao-sistematica-e-metaanalise/17801?id=17801&id=17801.
10. Grana et al. E-Cigarettes A Scientific Review. Circulation. May 13, 2014
11. Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Outbreak of Lung Injury
Associated with the Use of E-Cigarette, or Vaping, Products. Updated February
25, 2020. https://www.cdc.gov/tobacco/basic_information/e-cigarettes/severe-lung-disease.html.
12. WHO Report on the Global Tobacco Epidemic, 2019.
13. Unión Internacional Contra la Tuberculosis y Enfermedades Respiratórias -
The Union Org. Soluciones de salud para los pobres. Cuando prohibir es lo
mejor. Por qué los países de ingresos medios y bajos deben prohibir la venta de
cigarrillos electrónicos y productos de tabaco calentados para combatir verdaderamente
el consumo de tabaco. Documento de posición actualizado, 2020.
14. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Convenção -
Quadro para o Controle do Tabaco; Instituto Nacional de Câncer. – Rio de
Janeiro: INCA, 2011. 58 p.
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