Livro de
Hannah Arendt: Eichmann em Jerusalém; o subtítulo tem o peso de uma tese: um
relato sobre a banalidade do mal. Vale conhecer a autora, sua corajosa
biografia. Há um bom filme (Hannah Arendt – ideias que chocaram o mundo) que
situa a pensadora.
Hannah Arendt confronta o
significado do mal. Para ela, os grandes males são aqueles cometidos por
ninguéns. Seja: os maiores males não são uma grande obra, são, antes, males
piores, os trivializados na vida cotidiana, praticados como rotina pelas
pessoas comuns.
A expressão adquiriu vida
própria: o fenômeno da banalidade do mal está presente quando já não nos
sensibilizamos diante da maldade evidente. Usa-se-a, pois, para referir um mal
que se repete até se naturalizar no diário da vida das pessoas insignificantes.
Não se trata, assim, quem
pratica o mal ou quem se tornou infenso à sua manifestação, de uma
personalidade sociopata que se regozija com o sofrimento alheio. Não. O mal
vulgarizado passa a compor a paisagem; está aos olhos, mas já não os afeta.
Esse mal que se normaliza
no quadro habitual de afazeres (e lazeres), para a filósofa, não é uma
categoria ontológica, mas é uma produção histórica que se manifesta politicamente.
Para existir, é necessário que encontre um espaço institucional, uma “licença”
do Estado.
Arendt alerta que a
trivialização de situações de violência corresponde ao vazio de pensamento. Aí
a banalidade do mal se instala e opera. Indago: os números vexaminosos de
“pessoas em situação de rua” (eufemismo institucional para miseráveis);
acostumamo-nos a eles?
“Campos de refugiados:
áreas onde se reúnem pessoas deslocadas de suas moradias; assentamentos de
estruturas precárias, de estadia temporária e com condições sanitárias mínimas,
ocupados por populações sem qualquer renda ou que perderam suas posses.
As tendas e abrigos que
tais pessoas utilizam como moradia são construídos com materiais disponíveis:
paus, sacos plásticos, lama e pedras. Nos casos mais afortunados, agências de
ajuda humanitária fornecem o básico. Algumas pessoas passam por ali longos
anos.
Seus habitantes estão
expostos a uma terrível degradação psicológica e social, já que muitas vezes
eles não são bem-vindos aos lugares onde montaram acampamento, o que pode dar
origem a uma prática generalizada de delitos e perda das mínimas convenções
sociais.
É comum a superlotação que
esses campos experimentam; invariavelmente há mais gente do que locais para
assentamentos. São indivíduos sem destino ou perspectiva. A ajuda humanitária é
temporária, e dificilmente resolve os graves problemas que têm essas pessoas.
As causas para o surgimento
dessas áreas são comumente conflitos armados ou guerras, perseguições,
desastres e catástrofes ambientais. Nesses lugares espera-se por paz e vida
adequada” (Emerson Santiago, Campos de Refugiados, InfoEscola, editado).
Esses lugares provisórios
tornados perduradouros resultam de causas extremas. É comum que os lamentemos
quando os sabemos por noticiosos. Bem, nós temos nossos próprios acampamentos e
nossas próprias causas extremas. Não os lamentamos, porém.
Tomemos a cidade de São
Paulo: “o aumento da população em situação de rua acirrou a disputa debaixo de
pontes e viadutos, menos expostos à chuva e às violências. Calçadas, parques e
avenidas representam risco maior, além da total falta de privacidade.
Em 2015, a cidade tinha 16
mil pessoas vivendo nas ruas; no último censo, de 2019, 24 mil. A Prefeitura
prepara novo levantamento, que deve ser concluído no 2º semestre, mas
especialistas e entidades afirmam que o problema se agravou com a crise
sanitária”.
A matéria (Aumento de
moradores de rua agrava disputa sob pontes e viadutos, Gonçalo Junior e Tiago
Queiroz, Estadão, 25out21, editado) explicita os problemas dos “sem endereço”;
informa que 50 mil pessoas disputam 273 pontes, viadutos e pontilhões.
Aí estão desempregados,
famílias, idosos, crianças, usuários de drogas. Aí estão a solidão desesperada
e o amontoamento estressante. Sair para a mendicância recomenda levar as
crianças, pois não devem ficar expostas ao que há por lá, drogas inclusive.
As crianças dos “empurrados
para as ruas” vivem um cotidiano de violência, como roubos e brigas,
intervenções de fiscais cerceando o “comércio ilegal” de bugigangas,
apreendendo e destruindo mercadorias, lavações com jatos d’agua, recolhimento
de pertences.
Não obstante, as “vagas”
desses acampamentos são disputadas, negociadas, atravessadas por favores e
corrupção. Grupos se organizam para resistir a invasões; há “guardas” para
preservar a “propriedade”. Nesses acampamentos existe o que há no Brasil:
nossos vícios.
Ah, nesses acampamentos, em
maior dimensão, falta o que é escasso no Brasil: saúde elementar, educação,
higiene básica. Sobra barulho, esgoto a céu aberto, lixo amontoado, insetos,
ratos. A Prefeitura dá conta de 2.393 pessoas nessa situação, e não mais.
Essa situação nos vem da
nossa própria História; a História do país mais desigual do mundo.
Politicamente, esquerda e direita já governaram a Cidade (e o País). Essa marca
funda da nossa história, pois, foi escrita por nossa esquerda e por nossa
direita.
Esquerda e direita, nessas
coisas de governar, denunciam-se mutuamente. Talvez ambas as alas tenham razão.
A esquerda impessoaliza encargos, atribuindo-os ao “sistema”. A direita
terceiriza responsabilidades, transferindo-as à “mão invisível do mercado”.
“Invisíveis” são os campos
de refugiados fixados em todas as nossas grandes cidades. “Sistema” é o nosso
modo de organização social institucionalizado nas entranhas de um Estado
injusto que as variadas cores ideológicas que o dirigiram mantiveram intacto.
Tudo isso está à vista e é
visto, até porque grita aos olhos. É situação que segue e cresce. Recebe alguma
misericórdia. O mais é retórica, sociológica e eleitoral. Os miseráveis estão
trivializados. Não lamentamos sua condição, ou o fazemos por etiqueta, não por
afeto.
Que ocorre? “Dizemos
abominar nossa desigualdade, mas nos habituamos a ela. A questão é romper com o
substrato cultural que mantém boa parte do país na inércia e que ainda faz jus
ao ‘assim é porque assim sempre foi’, na frase lapidar de Raimundo Faoro”.
O problema ainda está na
nossa cabeça, e é por aí que precisamos começar a mudar” (Fernando Schüller,
Veja, 19mai21, editado). De fato, já dito acima: “A trivialização de situações
de violência corresponde ao vazio de pensamento. Aí a banalidade do mal se
instala”. E opera.
Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC.
Psicanalista e Jornalista.
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