Várias foram as vezes que tive a tarefa
de conquistar uma aposentadoria para clientes que relataram serem vítimas de
abusos de natureza física e psicológica. Diziam-me que, com o benefício,
poderiam finalmente viver sozinhas e não se submeterem mais a humilhações e
agressões.
Para outras, infelizmente, não havia
sequer alternativa a fim de que uma separação fosse mais sustentável, pois o
marido, além de proibi-las de trabalhar, nunca sequer contribuiu à Previdência
Social, não garantindo a estas nem mesmo uma aposentadoria.
Isso me faz lembrar da série “Maid”,
cuja protagonista, Alex, enfrenta a dificuldade de se libertar de uma vida que
foi sendo tolhida em razão da interferência de seu companheiro que minou seus
sonhos, sua essência, sua autoestima e confiança.
O abuso psicológico é entranhado, mas
não pouco corriqueiro na vida das mulheres. É um abuso emocional, existente nos
círculos mais íntimos. As feridas de Alex não ficam visíveis por meio de
hematomas, mas são profundas na alma e se tornam triviais, a ponto de nos
acostumarmos com os estragos pouco conscientes em nossas mentes.
E daí surge o questionamento: “por que
elas se submeteram a essa realidade e não procuraram autonomia, não saíram de
perto do agressor”? Bem, porque há uma cultura patriarcal tão enraizada na
sociedade e no interior dessas mulheres, por meio da educação perpassada ao
longo dos anos, que elas, de fato, acreditam que não sejam capazes ou que não
consigam mudar uma realidade na qual entendem já estarem predestinadas.
O contexto de obstáculos no Brasil
Segundo dados do último Anuário
Estatístico da Previdência Social – AEPS, as mulheres são a maioria dentre os
que se aposentam por idade, representando 64%, com benefícios em torno de um
salário mínimo. Todavia, na modalidade por tempo de contribuição, em que os
rendimentos são maiores, estas representam apenas 30% dos beneficiários. Nesse
cenário, menos mulheres conseguem se aposentar, têm menos emprego e mais
informalidade.
Em tal contexto, soma-se à dificuldade,
além dos cuidados quase sozinhas com os filhos e o lar, a dependência das
mulheres para com seus companheiros que, por muitas vezes, minam as
possibilidades de estas ascenderem no mercado de trabalho, e, na hora de
requerer uma aposentadoria, a dificuldade é grande.
Sem emprego ou vínculo empregatício
formal, muitas mulheres se dedicaram aos afazeres domésticos. Em contrapartida,
seus companheiros nunca contribuíram para a Previdência Social para que estas,
no futuro, pudessem gozar de uma aposentadoria, sem usufruir, muitas vezes, de
um mínimo de dignidade.
O Benefício de Prestação Continuada
(BPC) também pode ser dificultado, visto que se deve comprovar miserabilidade
econômica da família. Se a renda do companheiro já ultrapassa um salário
mínimo, salvo em famílias mais numerosas, se torna impossível conquistar esse
benefício para a mulher que nunca tenha recolhido previdência, ou por
pouquíssimo tempo.
Como se não bastasse, de acordo com as
rigorosas mudanças da mais recente reforma da previdência, também no benefício
de pensão por morte, se o companheiro vier a falecer, a renda do benefício não
será mais a de 100%, mas a de 60% da aposentadoria por invalidez que o falecido
teria direito, caso não haja mais dependentes.
Ou seja, há uma desvantagem quase
desumana para a mulher ter acesso a benefícios previdenciários e assistenciais
e garantir uma vida digna. Um cenário de dependência econômica, diversas vezes
acompanhada pela submissão psicológica e emocional. Por todo exposto, faz-se
urgente que haja políticas públicas para que a desvantagem social e
previdenciária feminina seja amenizada.
Aproveito o ensejo e deixo um recado às
mulheres que sofrem abusos: saiam do ciclo de submissão, conquistem trabalho,
benefícios previdenciários e muitos sonhos. Tenham coragem de interromper esta
engrenagem tortuosa e se libertar das intimidações da vida e da sociedade.
Carla Benedetti - sócia da Benedetti Advocacia, mestre em Direito
Previdenciário pela PUC-SP, associada ao IBDP (Instituto Brasileiro de Direito
Previdenciário), coordenadora da pós-graduação em Direito Previdenciário do
Estratégia Concursos
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