Não nos vemos como um corpo. Não nos ensinaram que somos um organismo, um sistema vivo, uma estrutura psicofisiológica. Mas, nós somos um corpo. Se nos olhamos no espelho, não vemos o nosso corpo; vemos o corpo que somos. A dualidade platônica reelaborada pelo cristianismo que nos alcançou não venceu Espinosa ou Hume.
Seja: não temos uma mente e nem temos um corpo, mas somos um corpo com
capacidade de pensar, uma estrutura física dotada de psiquismo. O pensamento é
um atributo do corpo. E como e por que esse corpo pensante gera violência? A
ciência confessa: aprendemos muito, não sabemos tudo. Temos, contudo, razoável
noção das coisas.
Um organismo, para pensar, tem de ter capacidade de registrar dados e de
buscá-los na memória para operações no presente. Humanos, macacos e
computadores fazem isto. Esta constatação não é suficiente para explicar todo o
comportamento o humano. O que, afinal, faz com que o humano pense e, ainda
assim, se comporte com violência?
A primeira razão está na relação do corpo com o seu passado. O que
memorizamos, nós o fazemos com conteúdo significante, e correlacionando
significativamente com os registros significativos antecedentes. Macacos fazem
isso de forma rudimentar; computadores não conseguem fazê-lo; humanos fazem-no
de forma complexa.
A segunda relaciona-se com o tempo futuro. O humano tem expectativa,
consegue viver antecipadamente o que imagina será o amanhã, fazendo-o com
emoções da realidade presente informada pelo passado. Finalmente, o humano é
situado na história do seu tempo, e só se afeta, pensa e se compreende nela.
Somos um animal histórico.
A memória (dados) e a expectativa (panorama futuro) sempre foram os elementos
de decisão do humano. Nos tempos selvagens, o corpo humano compunha a cadeia
alimentar. Matava para comer, mas era caçado e servia de comida. Sobreviveram
os que aprenderam a usar subsídios da memória para levar a vida até o dia
seguinte.
Memória da violência e estratégias de violência moldaram o animal que
evoluía. Nesse sentido, então, a inteligência que brotava no humano formava-se
como um recurso de luta, como uma arma. O que nos faltava de garras ou dentes
nos sobrava de cérebro mortal, inigualável em organizar a violência como
recurso eficaz de sobrevivência.
Descobrimos que agrupados éramos mais fortes. Internamente, no entanto,
membros do grupo tinham que se conter, ou a guerra doméstica mataria a todos.
Sobreviveram os capazes de se adaptar à convivência. Assim é que grupos
cresceram e produziram cultura – cultura como sistema de comportamento
vantajoso, mas que pede regra.
Sem regra compartilhada, está-se sujeito à oscilação das iras da
coletividade. É desse modo que a cultura se introjeta em animais humanos: como
“lei” subjetivada. O humano caracteriza-se exatamente por conter em si essa
tensão entre um corpo formado para a violência e uma cultura que se inscreve
nesse corpo violento e o reprime.
Atualmente, além da tradição cultural, há meios de repressão
institucional bem organizados e atuantes (ideologia e repressão). A violência,
porém, segue, pelo menos em alguns lugares. Que ocorre? Os estados sociais dos
agrupamentos primitivos evoluíram muito rapidamente, sem que os corpos humanos
acompanhassem essas mudanças.
Os primitivos viviam em condições equivalentes e possuíam um objetivo
comum: sobreviver aos ataques externos de outros animais, humanos ou não. Era,
ou coesão, ou morte. Hoje não nos articulamos em torno de objetivos comuns
(laços sociais esgarçados) e muitos estão relegados a condições de selva
(desprovidos das vantagens disponíveis).
Muitos têm um passado ruim, um presente triste, um futuro desanimador. A
evolução nos fez violentos antes de nos fazer controlados socialmente. A
violência que nos incomoda é indesejável, mas ela compõe a natureza humana. O
que não é natural nem razoável que se naturalize é uma sociedade tão injusta e
injustificável como a nossa.
Léo Rosa de
Andrade
Doutor em Direito
pela UFSC.
Psicanalista e
Jornalista.
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