Música do sambista Zeca Pagodinho pergunta “Você
sabe o que é caviar? Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar”. Poucos já comeram
caviar, porque é comida de rico. Esta iguaria de luxo são ovas do peixe chamado
esturjão, que vive no Mar Cáspio, nas proximidades da Rússia, e custa entre 6 e
12 mil euros o quilo. Mas muitos já comeram rapadura, que é um derivado da cana
de açúcar, acessível a todos os pobres. Por isso, se eu perguntar se você já
comeu caviar, poucos irão responder, mas quero intrigar a todos com outra
pergunta: você sabe a semelhança entre a jabuticaba e o precatório?
Vou lhes mostrar: precatório é uma invenção
tupiniquim. Precatório deriva do latim que significa “deprecare” ou requisitar
algo, pedir, implorar, suplicar. Isso mesmo, suplicar. Esse calote hoje
existente é coisa antiga.
A semelhança então é que jabuticabas e precatórios
só existem no Brasil. Ele surgiu no tempo do Brasil colônia, quando nossa
legislação se baseava nas Ordenações. Normas legais editadas pelos reis da
época, ou seja, ordenações, ordens.
Em 1582, o rei de Portugal era D. Felipe e uma de
suas Ordenações, editadas em julho daquele ano, incluiu o seguinte texto ao
Livro II, Título LXXXVI, § 23 das Ordenações Filipinas: (...) os Fidalgos,
os Cavalheiros e os Desembargadores nos
cavalos, armas, livros, vestidos de seus corpos, nem as mulheres
dos sobreditos, nem as mulheres fidalgas nos
vestidos de seus corpos e camas de suas pessoas, postos que outros bens não
forem necessários, se fará a execução, quando não tiverem outros bens
móveis, ou de raiz. E isto se não entenda nos roubos e
malfeitores, porque portais casos serão penhorados e constrangidos, até que
paguem, assim por seus bens, postos que sejam sobreditos, como por prisão de
suas pessoas”.
Ou seja, contra os poderosos da época, nada podia
ser feito. Eram intocáveis. Vem daí, então, a herança jurídica existente até
hoje de que os bens dos órgãos públicos não podem ser penhorados para pagar
dívidas. Precisam ser cobrados na forma de precatórios, pedidos, súplicas.
Por isso quando um processo judicial contra um
órgão pública termina, o juiz “depreca”, súplica ao devedor, o órgão
fazendário, para que inclua aquele valor na lista de pagamentos.
Então foi das Ordenações Filipinas, escritas pelo
Rei Felipe, de Portugal, que herdamos esta maldita herança jurídica.
Isso só mudou um pouquinho em 1934, quando a nova
Constituição Federal entrou em vigor, trazendo, assim, uma tímida mudança ao
determinar em um dos seus artigos que os precatórios deveriam ser pagos na
ordem cronológica de sua apresentação pelos tribunais, mediante ofício
requisitório na Secretaria da Fazenda. Mas não foi estabelecida nenhuma punição
em casa de não pagamento, de modo que, até hoje, vivemos um círculo vicioso
onde cada governante que entra joga a culpa em seu antecessor e pendura a dívida.
Dividiram os precatórios em dois tipos: os
alimentares, que são aqueles que tem origem na relação trabalhista dos
servidores públicos com os entes empregadores, e os não alimentares, aqueles
decorrentes de dívidas dos governos com empresas e particulares, tais como
asfaltamento de ruas, compras, viagens, combustíveis, desapropriações etc.
Os não alimentares devem ser pagos em 10 parcelas
mensais no ano civil seguinte ao da sua inscrição e então, caso o órgão devedor
não saldar tais parcelas, o juiz poderá mandar penhorar o valor da dívida nos
caixas do órgão devedor, criando-se, assim, uma inversão de valores. Os
governantes de plantão pagam as dívidas não alimentares em dia, porque ela tem
uma regra punitiva (sequestro) e protelam os alimentares, já que não há
punição.
Uma ação judicial contra qualquer órgão pública
demora, em média, de 8 a 12 anos. Depois que termina, vai para a fila dos
precatórios. No caso do Estado de São Paulo, a fila dos precatórios caminha a
passos lentos lá no ano de 2002. Isso mesmo, o Estado mais rico do Brasil pagou
o último precatório regular do ano de 2002, 18 anos atrás.
Os idosos e doentes gozam de prioridade nessa fila,
mas não recebem o valor integral. O governo paga uma pequena parte e pendura o
restante a perder de vista.
Some-se a isso que, em 2019, os deputados estaduais
aprovaram um projeto do governador João Dória reduzindo o valor da RPV
(Requisição de Pequeno Valor – que não entra na fila dos precatórios), que era
de R$ 31, para R$ 11 mil reais, o mesmo valor que é pago judicialmente pela
Prefeitura de Ariranha quando ela perde uma ação judicial.
O Estado e a Prefeitura de São Paulo são os
campeões das dívidas de precatórios, os quais juntos devem quase 50% dos
Precatórios do País, seguidos do Paraná: quase 13 bi; RS 7 bi, Minas Gerais e
Distrito Federal.
Em 2019, Dória pagou apenas R$ 2,3 bilhões da
dívida de precatórios alimentares, beneficiando apenas 8 % dos credores. Segundo
dados do TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo), 500 mil servidores esperam na
fila dos alimentares, apenas em SP, sendo de 150 já morreram. Uma maioria tem
mais de 60 anos e uma grande parte tem 80 anos ou mais.
Estados e municípios brasileiros devem 141 bilhões
de precatórios, mas os governos vivem reclamando disso, porém, que culpa o
servidor público tem? E por que não pagam? Simples: porque não existe
penalidade. Entra governador e sai governador, entra prefeito e sai prefeito, e
cada um empurra a dívida com a barriga, porque não são punidos.
Duas Emendas Constitucionais, a de n°s 94 e a 99,
mudaram a regra fixando prazo para pagamento final dos atrasados até 2024. Para
que isso ocorra, autorizou a utilização dos depósitos judiciais, acordos com
descontos e compensações financeiras.
E mesmo assim, os governantes não pagam as dívidas
e agora querem suspender o pagamento e prorrogar este prazo. Neste momento de
pandemia do COVID19 isso será um passo a maios no caos social, porque, como
visto acima, são exatamente os servidores idosos e doentes os mais
necessitados.
Os precatórios fazem rodar a economia. Quando uma
pessoa recebe o valor, ela compra comida, paga suas dívidas, ajuda um membro da
família endividado, constrói um puxadinho, ajuda um filho ou filha a se casar,
enfim, este dinheiro não será usado para comprar caviar. Talvez se sobrar, uma
rapadura.
Isso é uma grande incoerência que irá penalizar os
servidores idosos e doentes neste momento que a solidariedade humana emerge
para combater a pandemia do coronavírus.
A saída é que já foi dada: utilização dos depósitos
judiciais para amortização da dívida e, segundo dados da Comissão de
Precatórios da OABSP, “há R$ 9 bilhões em depósitos judiciais disponíveis para
serem exclusivamente utilizados no pagamento das dívidas com os servidores
públicos. Se utilizados estes recursos, um terço da dívida total do Estado com
precatórios, que hoje é de R$ 27 bilhões, seria liquidada”.
Então, se o TJSP usar estes 9 bilhões, que estão
parados no Banco do Brasil rendendo juros, será possível quitar a dívida com
milhares de credores de precatórios e, assim, o governo do estado não vai
precisar parcelar os precatórios.
Entendeu por que caviar é diferente de rapadura?
“Por isso, se alguém vier me perguntar. O que é caviar, só conheço de nome.
Nunca vi, nem comi, eu só ouço falar”.
Aparecido
Inácio Ferrari de Medeiros - Advogado em São Paulo; Conselheiro da AATSP.
Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo. Sócio titular de Aparecido
Inacio e Pereira, advogados associados. Membro do SINSA-CESA e do MADECA.
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