Hoje quero falar de abuso. Não daqueles facilmente
detectáveis como os de álcool e drogas, mas o tipo de abuso velado, violências
travestidas de afeto positivo. Armadilhas emocionais nas quais a vitima não
percebe facilmente e muitas vezes se enche de culpas e desculpas, chegando
mesmo a proteger o agressor, ou seja: vidas vividas na ilusão.
Não podemos falar sobre a posição do abusador como algo
fixo, mas sim em relações onde uma determinada pessoa abusa da outra. Em outras
situações, o abusador pode, sim, ser vitima de alguém. É como uma rede na qual
a posição é interdependente - o que perpetua relações abusivas e deixa ainda
mais difícil identifica-las como tal.
Abuso é cometido em diversos tipos de relação, entre
amores, amigos, no trabalho e até entre vizinhos. Por conta disso, é preciso
fortificar nossa identidade para que tenhamos segurança e autodefesa para não
nos tornarmos alvos fáceis para os manipuladores de plantão, algozes de alma,
que andam por aí.
Há um mecanismo de defesa psíquica que, para não sentir
dor e medo extremo de ameaça à vida real ou psíquica, minimiza as ocorrências
abusivas e até mesmo protege o predador. Muitos pensam que a Síndrome de
Estocolmo só existe em casos de sequestros de fato. Mas não é bem assim. Há vários
tipos de sequestros simbólicos que também podem dar o start em nossas defesas
psíquicas.
Mas como assim? Quando a vitima se vê apaixonada, sente
compaixão e tenta até ser salvadora do vilão, justificando o fato com
mecanismos internos, é porque sua razão foi sequestrada. E o resultado não
poderia ser pior: neurose instalada, vidas e almas perdidas, casamentos
desfeitos por maridos, esposas ou amantes manipuladores, casas perdidas por
terrorismo de vizinhos, homens e mulheres feridos que, para não se perceberem
presas (o que detonaria ainda mais suas frágeis autoestimas) amenizam
comportamentos desprezíveis que, aos olhos de qualquer terceiro, deflagram-se
como desrespeito e abuso.
Uma boa forma de identificarmos se as relações são
abusivas é perguntar ao nosso corpo como e onde nos afetam e, a partir dai,
tentar recuperar nossos instintos.
O problema é que uma das maiores
dificuldades é o abusado tomar consciência de sua posição. Ao dar o primeiro
passo, o processo se inicia. Como uma grande corrente, ele começa a perceber os
padrões de comportamento e a identificar várias relações nas quais já esteve
envolvido em abusos. Flashbacks espontâneos podem até começar a invadir sua
memória. E pode surgir uma sensação de culpa, medo e enjoo.
É o grande não de todo o nosso
sistema, o ato de rebelar-se através do qual torna-se impossível negar a
situação. Um lado da mente fica frustrada na tentativa de preservar o que nunca
se teve - ou então busca em vão justificar o parceiro/amigo tentando negar os
ocorridos e puxar a culpa para si, já que `se for minha responsabilidade é meu
o poder`. Mas trata-se de ilusão. Se há abuso, posso afirmar: o afeto era de
plástico e não existia. E o que provavelmente mantinha a relação era o
vampirismo emocional, ou seja: relações utilitárias travestidas de paixão
(lembrando que paixão nada mais [e que o movimento impetuoso da alma para o bem
ou para o mal).
A dor torna-se dilacerante e vem
sempre acompanhada de tristeza e solidão, uma sensação de incompetência
emocional e baixa estima. Há pessoas que nesse estágio adoecem fisicamente, com
febre, enjoos, tontura.
Passada a culpa e as tentativas
desesperadas de negar a situação, chega a raiva - às vezes tão doentia quanto o
próprio abuso, ela corrói a vitima ainda mais, sendo colocada como a única
forma de reaver a autoestima, quando na verdade não passa de mais um
subterfúgio para se permanecer em relação.
Não é raro desenvolverem-se quadros de
ansiedade e pânico.
Como só a verdade nos liberta, é vital
conseguirmos agarrar nossos demônios de frente, olhar nos olhos de nossos medos
e simplesmente desistir e se render à dor mais profunda - porque é justamente
ela que irá curar nossas feridas. Pode parecer estranho, mas é como o veneno
que cura. Dessa forma, seremos capazes de curar as feridas da alma e do
coração, que - assim como o processo natural das feridas do corpo - cicatrizam!
É muito importante que nem tentemos
compreender todo esse processo, mas sim admitir a dor e cuidar dela como
cuidaríamos de uma pequena criança que caiu mas não perdeu a capacidade de
andar. Só assim nossas cicatrizes poderão nos avisar sobre outras possíveis
ciladas e não nos sabotarem em nossa capacidade maior de nos relacionarmos.
Claro, existem relações saudáveis e
verdadeiros amores, assim como amigos sinceros em que podemos confiar.Mas como
li uma vez em uma tirinha: Amizade é como um bom café - uma vez frio não se
aquece sem perder bastante do primeiro sabor!
Aqueça sempre sua alma, ela merece.
Confie nas lições da vida e bola pra frente que, bem lá adiante, muita gente
bonita estará te esperando para relações verdadeiras e cheias de afeto.
Consulte o seu coração e fuja o mais
rápido que puder de qualquer tipo de relação abusiva, afinal o maior abuso que
podemos sofrer é o de nós mesmos.
Vale lembrar que sair de relações ou situações abusivas
requer muita coragem e força de vontade. Se sentir que não está conseguindo,
apesar de todos os seus mais profundos esforços de corpo, alma e coração, não
hesite em pedir auxilio a um profissional capacitado, ou seja: um psicólogo ou
psiquiatra. Você pode sair dessa!
Amélia Kassis - Psicóloga Junguiana com
especialização em Técnicas Corporais e Terapeuta Shiatsu; desenvolve
consultoria corporal e suporte psicoterápico para executivos das áreas
administrativa, financeira e comercial; somando mais de dez mil horas de
trabalho clínico. Seu trabalho fundamenta-se em técnicas de Massagem Oriental,
Bioenergética, Psicomotricidade, Relaxamento, Respiração, Hipnose, EMDR e
Terapia de Imagem. Como Educadora, instruiu Médicos, Fisioterapeutas e
Psicólogos, entre outros, a incluírem práticas da Medicina Oriental em seus
métodos de intervenção terapêutica. Também supervisiona grupos de diagnóstico
e estudo de casos, já tendo formado cerca de dois mil Terapeutas Corporais
desde 1990. Atualmente é coordenadora da área de Psicologia Clínica da
Companhia Zen (www.ciazen.com.br).
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