Um
dos temas mais polêmicos no Brasil deverá render um novo capítulo a partir de
agosto. A discussão sobre o aborto será retomada em audiências públicas
marcadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A etapa foi convocada pela
ministra Rosa Weber, relatora de uma ação proposta pelo PSOL para que o aborto
até o terceiro mês de gestação deixe de ser considerado crime, pois a proibição
viola direitos fundamentais.
Um
dos pontos de pressão para este novo debate também está na aprovação da vizinha
Argentina do projeto de lei que descriminaliza o aborto no país. Por lá, a nova
lei permitirá a realização do procedimento até a 14.ª semana de gestação em
qualquer caso e ainda estabelece que, se a gestante for menor de 16 anos, ele
deverá ser feito com o consentimento dela. Na Argentina, o aborto era proibido
por uma lei de 1921 e punido com pena de prisão. Na América Latina, o aborto
sem restrições é legal no Uruguai e em Cuba. Também é permitido na Cidade do
México. Em quase todos os demais países do continente é permitido apenas no
caso de risco para a mulher, quando não há chance de sobrevivência do feto ou
se a gravidez for resultado de um estupro. Em El Salvador, Honduras e Nicarágua
é proibido completamente.
Importa
lembrar que, pela legislação brasileira, o aborto só é permitido em caso de
estupro, de feto anencéfalo e em casos em que a vida da mãe está em risco. Sem
dúvida, foram conquistados alguns avanços relativos à questão do aborto no
país, mas a sociedade encontra-se, política e socialmente, despreparada para
discutir o tema.
A
definição do momento em que se inicia a vida é essencial para quem defende e
para quem é o contrário aborto. Afinal, a vida começa na concepção?
Fato
é que o Código Civil, em seu artigo 2° põe a salvo os direitos do nascituro,
embora o artigo refira mais direitos à pessoa que com a vida adquire
personalidade civil. Já a Constituição Federal, no artigo 5°, dispõe acerca da
proteção à vida sem fazer qualquer referência à concepção, o que sugere a não
adoção pelo texto constitucional da teoria que põe a salvo a vida naquele
instante. Essa é uma das teorias.
Para
parte dos ministros do STF são inconstitucionais os artigos do Código Penal que
criminalizam o aborto, conforme decisão de 2016. O entendimento valeu apenas
para um caso específico. Justamente por isso que o PSOL ingressou com a ação
sobre o mesmo tema, para que o entendimento tenha alcance geral.
O debate
será caloroso, já que há lados bem definidos. A chamada bancada religiosa
do Legislativo tem uma grande força e faz um imenso lobby contra todos os
avanços do tema, com justificativas em textos sagrados e na vontade de Deus – o
que é compreensível. De outro lado, esses mesmos legisladores precisam olhar o
tema a partir de dados. Descriminalizar o aborto não é incentivá-lo.
A
controvérsia quanto ao aborto reside no fato de que o direito à vida não é
absoluto. Para alguns, o Direito Constitucional (e natural) à vida do feto
precisa ser respeitado. Para outra corrente, a mulher faz jus ao direito à
dignidade humana, ao direito de escolha.
Outra
ótica deve nortear a discussão no sentido de tratar o aborto como assunto de
saúde pública. Globalmente, mais de 25 milhões de abortos inseguros (45% do
total) ocorrem anualmente, segundo estudo da Organização Mundial da Saúde
(OMS). A maioria é realizada em países em desenvolvimento de África, Ásia e
América Latina.
Esse
estudo de 2017 mostrou que a restrição ou proibição do acesso não reduz o
número de abortos. Ratificando esse dado, tem-se que, em países onde o aborto é
completa ou parcialmente proibido, um em cada quatro abortos é seguro. Em
países onde o aborto é legal, nove entre dez são realizados de maneira segura.
Quando
os abortos são feitos de acordo com as diretrizes e padrões da OMS, o risco de
complicações severas ou de morte é insignificante. Na ausência de condições
seguras, os resultados podem incluir aborto incompleto, hemorragia, lesões vaginal,
cervical e uterina, além de infecções, onerando os custos da saúde pública.
O
Ministério da Saúde apresenta uma Norma Técnica sobre Atenção Humanizada ao
Abortamento, cuja proposta é “fornecer aos profissionais subsídios para que
possam oferecer não só cuidado imediato às mulheres em situação de abortamento,
mas também, na perspectiva da integralidade deste atendimento, disponibilizar
às mulheres alternativas contraceptivas, evitando o recurso a abortamentos
repetidos”. Todavia, o que ainda se discute é o direito de a mulher optar pelo
aborto, não somente nos casos já previstos em lei.
O
procedimento abortivo em hospitais ou locais com segurança é feito apenas por
quem tem dinheiro para pagar. O acesso a medicamentos abortivos de origem
ilícita é pouco fiscalizado, existem sites que vendem explicitamente os
produtos. Apenas uma fiscalização mais intensiva e com penalidades mais graves
trarão alguma mudança no cenário atual.
Coaduno
com a visão do ministro do STF, Luis Roberto Barroso, na qual a proibição do
aborto deve ser relativizada pelo contexto social e pelas nuances de cada caso.
Por exemplo, a interrupção da gravidez é realizada por muitas mulheres, mas
apenas as mais pobres sofrem os efeitos dessa prática, pois se submetem a
procedimentos duvidosos em locais sem a infraestrutura necessária. Esse ciclo
coloca o Brasil como um dos países em que mais se morre pela prática do aborto
clandestino, ainda que nem todos os abortos sejam contabilizados, pelo evidente
receio da mulher em declarar a prática.
O
Judiciário não pode carregar esse fardo constante de legislar, sobretudo em
temas mais ásperos. Os três Poderes precisam enfrentar e discutir o tema aborto
em conjunto com os profissionais da saúde e a sociedade organizada. É
necessário que sejam estabelecidas regras cristalinas para que sejam reduzidos
os casos de mortes e de lesões físicas e morais resultantes do aborto
desassistido e clandestino. E que as discussões não se desviem do núcleo
central da questão: o direito da mulher.
Sandra Franco - consultora jurídica especializada em
Direito Médico e da Saúde, presidente da Comissão de Direito da Saúde e
Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP),
presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde, membro do
Comitê de Ética da UNESP para pesquisa em seres humanos e Doutoranda em Saúde
Pública – drasandra@sfranconsultoria.com.br
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