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quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Assédio e violência no trabalho em saúde: o custo invisível para a carreira de médicas

Revisões internacionais mostram alta prevalência de assédio e violência em equipes de saúde; entidades pedem prevenção ativa e canais seguros de denúncia 


A violência e o assédio no ambiente de saúde são problemas globais que atingem de forma desproporcional as mulheres. Revisões recentes apontam prevalência elevada entre médicas, enfermeiras e parteiras, com impactos psicológicos, institucionais e na permanência na carreira. Uma revisão publicada na The Lancet Global Health (2021) estimou que mais de 70% das profissionais de saúde já sofreram algum tipo de violência ocupacional, seja física, psicológica ou sexual. 

Além de evidências internacionais amplamente divulgadas, estudos recentes conduzidos por pesquisadoras brasileiras reforçam a gravidade do problema. Um novo artigo liderado pela Profa. Dra. Marise Samama, publicado em 2025 na revista Human Resources for Health, analisou fatores estruturais associados ao assédio e à violência de gênero no ambiente médico e identificou que padrões de abuso institucionalizado e relações hierárquicas rígidas aumentam de forma significativa o risco de violência psicológica e sexual contra profissionais mulheres. O estudo também aponta que a ausência de protocolos claros de denúncia e a tolerância institucional a comportamentos abusivos contribuem para a perpetuação do ciclo de violência, o que favorece o adoecimento emocional e o abandono precoce da carreira. 

Para Samama, o fenômeno é estrutural. “O assédio mina a confiança, corrói a liderança feminina e empurra profissionais talentosas para fora de áreas competitivas. Sem ambiente seguro, não há equidade.” 

Estudos brasileiros reforçam o padrão. Uma pesquisa conduzida na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em 2021, apontou que 55% das médicas residentes relataram assédio moral e 28% relataram assédio sexual durante a formação, com forte subnotificação por medo de retaliação. Outro levantamento da Fiocruz, realizado em 2020, identificou que 76% das trabalhadoras da saúde já vivenciaram episódios de violência psicológica, especialmente humilhações, gritos e intimidação por pares e superiores. 

O impacto não é apenas emocional. Pesquisas internacionais mostram que o assédio influencia diretamente trajetórias profissionais. Estudo do National Institutes of Health (NIH) e da AAMC, publicado em 2022, revela que médicas têm o dobro de chance de abandonar posições acadêmicas em decorrência de violência e hostilidade. Além disso, mulheres submetidas a episódios recorrentes relatam menor confiança na liderança, menor produtividade e maior intenção de migrar para áreas menos competitivas. 

Especialistas apontam que a cultura hierárquica da saúde amplifica o problema. A estrutura tradicional de residência, marcada por longas jornadas e relações assimétricas, dificulta denúncias. Muitas profissionais relatam que colegas e chefias normalizam comportamentos abusivos em nome da ideia de formação rigorosa. Segundo Samama, essa lógica perpetua o ciclo. “Naturalizar o abuso como parte da formação médica é uma falha institucional grave. Violência não forma caráter. Só gera exaustão e desistência.” 

A violência contra mulheres em saúde também tem um custo invisível para o sistema, que é a evasão de talentos. Uma pesquisa publicada no BMJ Open em 2022 mostrou que jovens médicas que sofrem assédio têm até 50% mais chance de abandonar especialidades cirúrgicas, consideradas estratégicas e historicamente dominadas por homens. O fenômeno aprofunda desigualdades e reduz a presença feminina justamente em áreas onde sua participação é fundamental para ampliar diversidade e inovação. 

A AMCR defende que a mudança depende de governança. Entre as recomendações da entidade estão protocolos obrigatórios de prevenção, treinamentos periódicos, canais independentes de denúncia e indicadores públicos de casos e desfechos, sempre com resguardo ao sigilo das vítimas. “É preciso responsabilização. Sem consequências claras, a cultura não muda. E sem cultura segura, perdemos lideranças femininas que o sistema levou anos para formar”, afirma Samama. 

A entidade também recomenda apoio psicológico gratuito e políticas de tolerância zero para condutas de assédio em hospitais, universidades e clínicas. Segundo a líder, programas de acolhimento reduziriam a subnotificação e fortaleceriam o senso de proteção institucional. “A vítima não pode carregar a culpa. A instituição precisa assumir o protagonismo na reparação e prevenção.” 

Programas de mentoria e redes de apoio entre médicas aumentam a chance de denúncia e reduzem o isolamento, segundo estudos de implementação em serviços de saúde. Um relatório da Organização Mundial da Saúde, publicado em 2020, mostrou que equipes que adotam mecanismos formais de suporte registram aumento de 40% na notificação de violência ocupacional e redução do tempo de resolução dos casos. 

Diante desse cenário, a AMCR prepara um guia prático com fluxos de acolhimento e denúncia para adoção por instituições públicas e privadas. O material inclui modelos de protocolos, exemplos de métricas e orientações sobre comunicação segura com vítimas. 

“Assédio não é efeito colateral da alta performance. É falha de governança. Cuidar de quem cuida é prioridade ética e de gestão”, conclui Samama.


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