Um século. Mais de 100 milhões de mortos pelo mundo
afora em nome da Revolução que prometia mudar a face da Terra. Purgas
sangrentas no país de origem, a Rússia, efetivadas sem dó pelos herdeiros
bolcheviques do antigo império dos czares. Esperança de libertação que, à
semelhança da Revolução Francesa, passou a se espalhar pelo mundo como estrela
de esperança, mas que terminou, após 70 anos de domínio totalitário sobre a
sociedade, desabando como castelo de cartas. Não foi disparado um tiro no
grande movimento insurrecional que em 1989 percorreu o império soviético, dando
fim a um modelo de poder unipessoal que pretendeu se tornar eterno. O império
bolchevique morreu de dentro para fora.
Uma das notas dessa revolução foi a determinação
inabalável dos seus líderes, notadamente de Lenin. "Temos diante de
nós", frisava o líder dos bolcheviques em dezembro de 1900, no primeiro
número do panfleto Faísca, "a força inimiga em toda a sua plenitude,
atacando e eliminando os nossos melhores elementos. Nós devemos tomar este
poder e nós o tomaremos". Foi exatamente o que aconteceu 17 anos depois.
Para Alexis de Tocqueville, a Revolução Francesa
ficou marcada na memória da humanidade porque se apresentou como uma
"revolução religiosa" que prometia mudar a natureza humana. Se
tivesse assistido à Revolução de Outubro de 1917, Tocqueville aplicaria a esta
as mesmas palavras com que se referiu ao caráter salvífico da Revolução
Francesa. Ambas, afinal de contas, eram filhas da Religião Civil rousseauniana.
O império czarista, ao longo dos três séculos de
duração da dinastia Románov, se revelou como uma grande máquina expansionista.
Simon Sebag Montefiore, em Os Románov - 1613-1918, escreve:
"Era difícil ser czar. A Rússia não é um país fácil de governar. Vinte
soberanos da dinastia dos Romanov reinaram por 304 anos, de 1613 até a
derrubada do regime czarista pela Revolução de 1917.
Sua ascensão começou no
reinado de Ivan, o Terrível, e terminou na época de Rasputin. (...). Estima-se
que o Império Russo aumentou cerca de 140 quilômetros por dia depois que os
Románov chegaram ao trono, em 1613, ou mais de 520 mil quilômetros quadrados
por ano. No final do século 19, eles governavam um sexto da superfície da Terra
- e continuavam em expansão. A construção de impérios estava no sangue dos
Románov".
A Rússia, como lembrou Antônio Paim em A querela
do estatismo, recebeu uma dupla herança do denominado
"despotismo asiático": a proveniente de Bizâncio e a decorrente da
dominação mongólica. Disso resulta uma circunstância que em geral se perde de
vista: a concentração do poder total em mãos da burocracia czarista.
Os bolcheviques derrubaram o czarismo e o
substituíram por um regime totalitário. Implantaram a "ditadura do
proletariado", a fim de estabelecer o regime que redimiria todos das
injustiças: o comunismo. Mas o que de fato ocorreu foi a implantação, pelos revolucionários
sob a liderança de Lenin e Trotski, da ditadura do aparelho revolucionário
sobre os proletários russos e sobre o resto da antiga sociedade czarista. Esse
primeiro passo foi reforçado pela longa e sanguinolenta ditadura stalinista.
Marx não acreditava na implantação do socialismo
pela via democrática das eleições e dos partidos ligados aos sindicatos.
Enquanto na Alemanha e nos demais países da Europa apareciam formas variadas de
social-democracia (e a maior contribuição nesse terreno foi dada, na Alemanha,
por Edward Bernstein), firmava-se na União Soviética uma forma de totalitarismo
e se consolidava, como frisou Milovan Djilas (citado também por Paim em Marxismo e
descendência), o domínio totalitário de uma "nova
classe", a dos burocratas do Partido Comunista ao redor dos seus líderes.
Lenin elaborou a proposta de passagem do
autocratismo russo para o totalitarismo comunista. Stalin consolidou essa
passagem, mediante a utilização da máquina do Estado para exterminar qualquer
oposição e para converter a indústria russa numa espetacular máquina de guerra.
O trabalho preliminar de Lenin consistiu em aplainar o caminho para a pregação
do marxismo ao povo russo, traduzindo os conceitos complexos do hegelianismo em
fórmulas práticas.
O pai de Lenin tinha sido professor primário e conselheiro
do czar para assuntos ligados aos camponeses. Quando saiu da longa prisão a que
o governo czarista o condenou em Samara, Lenin assumiu as funções de pedagogo
da revolução.
A doença da Revolução de 1917, como das demais
revoluções comunistas do século 20, consistiu no primado do bem particular
da Nomenklatura sobre o resto. Lenin deixou claro o tipo
de república almejada pela Revolução, quando fixou duas coisas: em primeiro
lugar, indicando qual seria o ideal institucional, definindo-o como "um
poder não controlado por leis"; e, depois, ao descrever qual seria o
processo revolucionário acalentado por ele, ao frisar que "uma revolução
sem pelotão de fuzilamento de nada vale". Essas foram as duas colunas
institucionais, nitidamente despóticas, que sustentaram a Revolução de Outubro.
Ricardo Vélez Rodríguez -
docente da Universidade Positivo e da Facultade Arthur Thomas (Londrina).
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