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terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Vulnerabilidade na maioridade: a urgência de acompanhar jovens egressos de serviços de acolhimento

 

A morte de um jovem em situação de vulnerabilidade psíquica e egresso do serviço de acolhimento, após invadir a área onde ficava uma leoa em um zoológico de João Pessoa (PB), reacendeu uma discussão que o Brasil insiste em adiar: qual é o destino de meninas e meninos que crescem em espaços de acolhimento após completarem os 18 anos? E, mais grave, o que acontece com aqueles que chegam à vida adulta com transtornos mentais não diagnosticados ou tratados de forma adequada? 

Durante anos, acompanho histórias de crianças e adolescentes que, como Gerson de Melo Machado, tiveram trajetórias marcadas por rupturas familiares, pobreza estrutural, abandono e ausência de políticas públicas. Muitos chegam ao acolhimento já com indícios de comprometimento emocional; outros desenvolvem sintomas ao longo de uma vida inteira de violências e privações. Ainda assim, ao atingirem a maioridade, esses jovens são empurrados para fora do sistema de proteção com uma velocidade incompatível com a complexidade de suas histórias. É como se a vida adulta fosse tratada como um marco para um ganho de autonomia, quando, em realidade, marca o início de uma nova etapa de vulnerabilidade.  

O caso que ganhou repercussão nacional revela um padrão conhecido por quem atua na proteção infantil: diagnósticos tardios, tratamentos intermitentes, ausência de acompanhamento contínuo e a inexistência de políticas que assegurem uma transição segura para a vida adulta. Jovens como Gerson deixam o acolhimento, mas não encontram suporte para se desenvolverem como cidadãos plenos. Em muitos municípios, não há albergues, residências inclusivas, programas de saúde mental adaptados ou equipes especializadas para acompanhar egressos de serviço de acolhimento com transtornos mentais. Sem apoio, eles permanecem expostos a riscos que poderiam ser evitados. 

É preciso reconhecer que a autonomia não nasce aos 18 anos - ela é construída. E só pode ser construída quando existe uma rede capaz de sustentar, orientar e acompanhar. Para jovens, que enfrentaram violações de direitos, essa rede deveria ser ainda mais robusta. Um país que se compromete com a proteção integral de crianças e adolescentes não pode simplesmente desligá-los do cuidado quando se tornam maiores de idade, sobretudo quando há histórico de sofrimento mental. A falta de continuidade não é apenas uma falha técnica: é uma violação profunda do direito ao desenvolvimento. 

A juventude egressa precisa de políticas específicas que garantam suporte psicossocial, moradia assistida, acompanhamento terapêutico, formação e inserção profissional e fortalecimento de vínculos comunitários. Precisamos superar a ilusão de que basta oferecer acolhimento até os 18 anos. O que esses jovens mais precisam é de políticas que lhes permitam existir plenamente fora do acolhimento, com apoio concreto para lidar com traumas, fragilidades emocionais e a construção de um projeto de vida. 

O que aconteceu recentemente não é um ponto fora da curva, mas um sintoma de um sistema que ainda não compreendeu que proteção não se encerra com a maioridade. É urgente que municípios, Estados e União assumam essa pauta com seriedade, estruturando programas permanentes de transição para a vida adulta que incluam jovens com transtornos mentais, para que nenhuma vida seja marcada por abandono institucional.

A reflexão que deixo é esta: quantos jovens como Gerson ainda precisarão cair no vazio entre o acolhimento e o mundo real para que entendamos que cuidado é continuidade? Enquanto não encararmos essa responsabilidade como sociedade, seguiremos transformando maioridade em desamparo. E trajetórias de vidas com marcas profundas continuarão se repetindo.

 

Michéle Mansor - gerente nacional de Desenvolvimento Programático da Aldeias Infantis SOS



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