A morte de um jovem em situação de vulnerabilidade psíquica e egresso do
serviço de acolhimento, após invadir a área onde ficava uma leoa em um
zoológico de João Pessoa (PB), reacendeu uma discussão que o Brasil insiste em
adiar: qual é o destino de meninas e meninos que crescem em espaços de
acolhimento após completarem os 18 anos? E, mais grave, o que acontece com
aqueles que chegam à vida adulta com transtornos mentais não diagnosticados ou
tratados de forma adequada?
Durante anos, acompanho histórias de crianças e adolescentes que, como Gerson de Melo Machado, tiveram trajetórias marcadas por rupturas familiares, pobreza estrutural, abandono e ausência de políticas públicas. Muitos chegam ao acolhimento já com indícios de comprometimento emocional; outros desenvolvem sintomas ao longo de uma vida inteira de violências e privações. Ainda assim, ao atingirem a maioridade, esses jovens são empurrados para fora do sistema de proteção com uma velocidade incompatível com a complexidade de suas histórias. É como se a vida adulta fosse tratada como um marco para um ganho de autonomia, quando, em realidade, marca o início de uma nova etapa de vulnerabilidade.
O
caso que ganhou repercussão nacional revela um padrão conhecido por quem atua
na proteção infantil: diagnósticos tardios, tratamentos intermitentes, ausência
de acompanhamento contínuo e a inexistência de políticas que assegurem uma
transição segura para a vida adulta. Jovens como Gerson deixam o acolhimento,
mas não encontram suporte para se desenvolverem como cidadãos plenos. Em muitos
municípios, não há albergues, residências inclusivas, programas de saúde mental
adaptados ou equipes especializadas para acompanhar egressos de serviço de
acolhimento com transtornos mentais. Sem apoio, eles permanecem expostos a
riscos que poderiam ser evitados.
É
preciso reconhecer que a autonomia não nasce aos 18 anos - ela é construída. E
só pode ser construída quando existe uma rede capaz de sustentar, orientar e
acompanhar. Para jovens, que enfrentaram violações de direitos, essa rede
deveria ser ainda mais robusta. Um país que se compromete com a proteção
integral de crianças e adolescentes não pode simplesmente desligá-los do
cuidado quando se tornam maiores de idade, sobretudo quando há histórico de
sofrimento mental. A falta de continuidade não é apenas uma falha técnica: é
uma violação profunda do direito ao desenvolvimento.
A
juventude egressa precisa de políticas específicas que garantam suporte
psicossocial, moradia assistida, acompanhamento terapêutico, formação e
inserção profissional e fortalecimento de vínculos comunitários. Precisamos
superar a ilusão de que basta oferecer acolhimento até os 18 anos. O que esses
jovens mais precisam é de políticas que lhes permitam existir plenamente fora
do acolhimento, com apoio concreto para lidar com traumas, fragilidades
emocionais e a construção de um projeto de vida.
O
que aconteceu recentemente não é um ponto fora da curva, mas um sintoma de um
sistema que ainda não compreendeu que proteção não se encerra com a maioridade.
É urgente que municípios, Estados e União assumam essa pauta com seriedade,
estruturando programas permanentes de transição para a vida adulta que incluam
jovens com transtornos mentais, para que nenhuma vida seja marcada por abandono
institucional.
A reflexão que deixo é esta: quantos jovens como Gerson ainda precisarão cair no vazio entre o acolhimento e o mundo real para que entendamos que cuidado é continuidade? Enquanto não encararmos essa responsabilidade como sociedade, seguiremos transformando maioridade em desamparo. E trajetórias de vidas com marcas profundas continuarão se repetindo.
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