Especialista
da Inspirali explica a atual situação do país em relação à doença
Depois de mais de 30 anos dessa epidemia que já afetou milhares de pessoas, o Brasil tem avançado muito no combate ao HIV e pode-se dizer que o marco mais relevante desta história foi alcançado no ano passado. Segundo o Ministério da Saúde, 96% das pessoas que vivem com HIV no país sabem que têm o vírus, ou seja, foram testadas. Dessas pessoas que têm o diagnóstico, 82% já estão em tratamento efetivo sendo que 95% estão, nesse momento, em supressão viral, ou seja, com a carga viral indetectável, que é o que se espera de uma pessoa em tratamento adequado, já que até o momento trata-se de uma doença que não tem cura.
Para fazer uma atualização sobre o momento do país em
relação à doença, a Inspirali, ecossistema que atua na gestão de 15 escolas
médicas em diversas regiões do Brasil, convidou o infectologista Maurício de
Souza Campos, coordenador e professor do curso de medicina da UNIFACS. Confira:
- Como está o cenário de combate a AIDS
atualmente no Brasil?
R: Temos avançado bastante no número de pessoas em
tratamento e nas políticas de ação ao combate do HIV, mas os desafios ainda
existem, especialmente por se tratar de uma doença cuja transmissão é pelo
contato sexual, com sexo desprotegido. E aí é um alerta principalmente para a
população adolescente, que tem demonstrado um certo desapego ao autocuidado, e
isso acaba quebrando uma cadeia de prevenção e permitindo que o vírus continue
se perpetuando na população e com um controle ainda um pouco tênue.
- O que há de novidade em relação à prevenção
da doença?
R: Avançamos muito na prevenção do HIV/AIDS. Por se
tratar de uma infecção sexualmente transmissível, as estratégias precisam ser
múltiplas e não se restringir apenas ao uso de preservativo. Quando falamos em
prevenção, falamos na perspectiva de sexo seguro, com o uso de preservativo, de
campanha de educação, de testagem em massa. Quanto mais pessoas testadas e
diagnosticadas precocemente, mais controle se tem da infecção. Existem outras
modalidades de prevenção, como por exemplo a PEP e a PREP. A PEP é a profilaxia
pós-exposição, para pessoas que se expuseram risco de contaminação por via
sexual ou tiveram algum acidente com perfuro cortante. Situação em que após uma
avaliação médica, é prescrita uma combinação de medicamentos para evitar a
infecção e o paciente faz uso por 28 dias. Temos também a PrEP - profilaxia
pré-exposição - que é uma estratégia também medicamentosa em que a pessoa que
se encontra em risco de infecção, seja porque tem múltiplos parceiros, seja
porque tem um hábito de manter relação sexual desprotegida, faz uso para evitar
a contaminação. É importante lembrar que há a necessidade de uma avaliação
médica minuciosa para que a PrEP seja prescrita e orientada. Essas são
estratégias que cada vez mais vem se popularizando.
- E como está o cenário no mundo?
R: Quando voltamos o nosso olhar para o mundo, vemos
dados que são discrepantes. Até dezembro de 2024, aproximadamente 41 milhões de
pessoas viviam com HIV ao redor do mundo e só no ano de 2024, aproximadamente
1,3 milhão de novos casos de infecção por HIV foram diagnosticados e 640 mil
pessoas morreram por causas relacionadas à infecção do HIV. Mesmo com esses
números, de 2010 até o momento percebemos alguns progressos, especialmente com
queda de novas infecções e mortes relacionadas ao HIV. Estima-se que houve 54%
de queda de pessoas que morreram por causas relacionadas ao HIV na última
década, porém esse fenômeno não ocorreu de forma homogênea no mundo. Temos um
controle efetivo e crescente da infecção, por exemplo, na Europa Ocidental, nos
países asiáticos de economia fortalecida e na Austrália. Mas em regiões onde
temos desigualdades sociais graves, relacionadas à pobreza, o cenário é
completamente diferente, principalmente na África subsaariana, no leste europeu
e no sudeste da Ásia, onde as populações são menos assistidas, especialmente em
questões de saúde. Mesmo com todo o esforço da UNAIDS, braço da ONU na luta
contra o HIV/AIDS, em universalizar o acesso ao tratamento e a testagem
gratuita, os desafios ainda são gigantes. No Brasil, a situação é mais
controlada devido ao excelente programa de combate a infeção do Ministério da
Saúde.
- O que temos de avanço em relação a
tratamento?
R: Temos hoje um arsenal imenso de drogas
antirretrovirais que são usadas para o controle da infecção, mas importante
dizer que não é a cura. É um controle da infecção, onde o paciente convive com
HIV com uma carga viral indetectável (situação em que não é identificado a
vírus no sangue do paciente através de testes de biologia molecular). Nesse
contexto, a pessoa vivendo com HIV não transmite o vírus a terceiros por
contato sexual. Em um passado não muito distante, precisávamos fazer uma
combinação de várias drogas - daí surgiu o termo coquetel anti AIDS que se
popularizou ao redor do mundo - para atingir esses resultados. Às vezes, o
paciente chegava a tomar até 16 comprimidos por dia para conseguir ter um
controle do HIV e isso era um grande problema porque quanto mais comprimidos,
maiores efeitos colaterais e menor a adesão à terapêutica do paciente. Avançamos
muito ao longo desses mais de 40 anos e hoje temos drogas de altíssima barreira
genética, ou seja, drogas que dificilmente o vírus consegue fazer resistência a
elas, com posologia mais simples, com tomada de comprimido em menor quantidade
e menos vezes ao dia. Hoje podemos inclusive tratar paciente com um único
comprimido/dia em algumas situações. Essa evolução terapêutica foi fator
decisivo para alcançarmos resultados mais robustos no combate ao
desenvolvimento da doença.
- Já existe estudos para vacina contra a
doença? Se sim, há previsão?
R: Nos últimos anos, algumas pesquisas têm gerado um
otimismo, mesmo que cauteloso. Por exemplo, temos no momento dois estudos sendo
conduzidos por indústrias farmacêuticas diferentes e com apoio de organizações
de combate ao HIV. Em junho desse ano, esses dois estudos mostraram, pela
primeira vez, a possibilidade de uma estratégia de vacinação contra o HIV em
etapas. São resultados ainda bem preliminares, mas foi possível demonstrar
células do sistema imunológico podem ser ativadas para produzirem anticorpos -
proteínas neutralizantes de invasores do corpo - contra as variantes do vírus
HIV. Esses estudos mostraram que há um potencial intrínsecos células do sistema
imunológico humano de produzir esses anticorpos e bloquear a
multiplicação/replicação de muitas variantes do HIV. O HIV é um vírus que sofre
mutação muito rápido, então existem muitas variantes, o que dificulta ter uma
vacina direcionada. Ainda em 2025 fomos surpreendidos com a publicação de um
artigo indicando que vacinas experimentais baseadas na tecnologia do RNA, a
mesma tecnologia que permitiu que a pandemia de Covid fosse controlada, se
mostraram capazes de ativar células do sistema imune para produzirem anticorpos
duradouros contra o HIV. Esses resultados são um marco na história da busca de
uma vacina pelo HIV, até porque, historicamente, induzir a produção de
anticorpos eficazes contra o HIV tem sido um dos maiores obstáculos da pesquisa
de vacinas. Com essa evidência, demos um passo importante para que, no futuro
talvez não muito distante, a gente possa ter, sim, uma vacina contra o HIV.
Essa vacina seria destinada para população que ainda não convive com HIV, para
evitar que essas pessoas se contaminem.
- Há possibilidade de erradicação da doença
no Brasil? Como estamos em relação a isso?
R: Erradicar uma doença não é algo tão simples. Ao longo
da história, a única doença que pode ser dita como efetivamente erradicada é a
varíola. Tem doenças que não estão em circulação, mas que não podemos considerar
erradicado porque na distribuição do tempo e espaço vez ou outra aparece um
caso aleatório rapidamente controlado. Falamos ainda em controle, que é o
primeiro passo da erradicação, mas é um passo bem incipiente e eu diria que se
conseguirmos chegar ao controle efetivo, estaremos muito próximo da
erradicação.
- Quais os principais grupos de risco para a
doença?
R: Não usamos mais o termo grupo de risco, por conta do
estigma que você acaba impondo sobre pessoas de determinado segmento ou classe
social. Isso acontecia lá na década de 80 e foi responsável por uma
disseminação de fake news em torno da doença. As pessoas relacionavam o
HIV a práticas homossexuais, homoafetivas, o que fez com que populações de
práticas heterossexuais não se protegessem de forma adequada. Vimos então, no
início do século 21, uma virada, com mais de 50% das pessoas infectadas sendo
pessoas que se declaravam bissexuais e heterossexuais. Até porque sempre se
soube que o HIV não poderia estar relacionado a uma única prática sexual. Então
o nome grupo de risco foi erradicado do meio acadêmico. O que usamos são
comportamentos arriscados, situações que colocam a pessoa em vulnerabilidade e
aumentam a chance de infecção. E ela é uma só, que é a prática de sexo
desprotegido. Então existem situações que potencializam a possibilidade de
infecção, mas grupo de pessoa não. Focamos na prática, não na pessoa.
- Quando ela pode ser fatal?
R: Hoje temos claramente uma relação entre o tratamento e
longevidade. Tenho pacientes em tratamento que tem mais de 20 anos de infecção
por HIV e que têm uma vida normal, mantendo hábitos de vida saudável. Hoje
falar em morte por HIV é falar de pessoas que não estão em tratamento ou porque
não tiveram acesso, o que é uma perversidade social que envolve o poder
público, ou porque assumiram a responsabilidade de não fazer o tratamento por
diversas questões.
Quando o paciente tem um diagnóstico, é importante ter
uma equipe multidisciplinar para discutir sobre todos os aspectos da vida do
paciente, assim, trabalhamos a saúde numa perspectiva holística, não como uma
ausência de doença, mas como algo que precisa ser estudado e avaliado sobre
vários aspectos, que podem ser sociais, religiosos, psicológicos. Todas essas
questões estão ali e quando trabalhadas de forma adequada, permitem que o
paciente tenha uma adesão terapêutica.
- O quanto os tratamentos disponíveis hoje
são eficazes?
R: Os tratamentos hoje são bem eficazes. Temos drogas que
atuam de forma muito rápida e segura com poucos efeitos colaterais permitindo
atingir o objetivo primário que é tornar o indivíduo indetectável em relação à
carga viral, então essas medicações são altamente seletivas com poucos efeitos
colaterais com a boa adesão terapêutica porque a quantidade de comprimidos que
se toma é muito pequena. Temos visto medicamentos de altíssima potência e
segurança. Não se deve ter medo de fazer o teste, e se diagnosticado, não
tenha medo de se tratar.
- O tratamento é disponibilizado pelo SUS?
R: Sim, nós temos uma política no Brasil, do Sistema
Único de Saúde, de combate e controle do HIV-AIDS, que é referência no mundo
todo. O Brasil tem o maior programa de controle da infecção, dos países
signatários da ONU. Aqui conseguimos atender toda a população levando teste,
diagnóstico, acompanhamento e tratamento gratuito sem interrupção. Têm
pesquisadores do mundo todo, principalmente da área social, que buscam o Brasil
para entender como um país de dimensões continentais é capaz de ter um programa
tão consolidado e organizada juntando pesquisadores, médicos infectologistas,
clínicos gerais, profissionais que atuam na assistência primária, médicos de
saúde de família. Então sim, se tem alguma coisa que a gente consegue falar com
orgulho no Brasil, entre tantas outras, é o programa de controle de infecção do
HIV.
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