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sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

HIV no Brasil: avanço é notório, mas desafios ainda existem

 

Especialista da Inspirali explica a atual situação do país em relação à doença

 

Depois de mais de 30 anos dessa epidemia que já afetou milhares de pessoas, o Brasil tem avançado muito no combate ao HIV e pode-se dizer que o marco mais relevante desta história foi alcançado no ano passado. Segundo o Ministério da Saúde, 96% das pessoas que vivem com HIV no país sabem que têm o vírus, ou seja, foram testadas. Dessas pessoas que têm o diagnóstico, 82% já estão em tratamento efetivo sendo que 95% estão, nesse momento, em supressão viral, ou seja, com a carga viral indetectável, que é o que se espera de uma pessoa em tratamento adequado, já que até o momento trata-se de uma doença que não tem cura. 

Para fazer uma atualização sobre o momento do país em relação à doença, a Inspirali, ecossistema que atua na gestão de 15 escolas médicas em diversas regiões do Brasil, convidou o infectologista Maurício de Souza Campos, coordenador e professor do curso de medicina da UNIFACS. Confira:

 

- Como está o cenário de combate a AIDS atualmente no Brasil?

R: Temos avançado bastante no número de pessoas em tratamento e nas políticas de ação ao combate do HIV, mas os desafios ainda existem, especialmente por se tratar de uma doença cuja transmissão é pelo contato sexual, com sexo desprotegido. E aí é um alerta principalmente para a população adolescente, que tem demonstrado um certo desapego ao autocuidado, e isso acaba quebrando uma cadeia de prevenção e permitindo que o vírus continue se perpetuando na população e com um controle ainda um pouco tênue.

 

- O que há de novidade em relação à prevenção da doença?

R: Avançamos muito na prevenção do HIV/AIDS. Por se tratar de uma infecção sexualmente transmissível, as estratégias precisam ser múltiplas e não se restringir apenas ao uso de preservativo. Quando falamos em prevenção, falamos na perspectiva de sexo seguro, com o uso de preservativo, de campanha de educação, de testagem em massa. Quanto mais pessoas testadas e diagnosticadas precocemente, mais controle se tem da infecção. Existem outras modalidades de prevenção, como por exemplo a PEP e a PREP. A PEP é a profilaxia pós-exposição, para pessoas que se expuseram risco de contaminação por via sexual ou tiveram algum acidente com perfuro cortante. Situação em que após uma avaliação médica, é prescrita uma combinação de medicamentos para evitar a infecção e o paciente faz uso por 28 dias. Temos também a PrEP - profilaxia pré-exposição - que é uma estratégia também medicamentosa em que a pessoa que se encontra em risco de infecção, seja porque tem múltiplos parceiros, seja porque tem um hábito de manter relação sexual desprotegida, faz uso para evitar a contaminação. É importante lembrar que há a necessidade de uma avaliação médica minuciosa para que a PrEP seja prescrita e orientada. Essas são estratégias que cada vez mais vem se popularizando.

 

- E como está o cenário no mundo?

R: Quando voltamos o nosso olhar para o mundo, vemos dados que são discrepantes. Até dezembro de 2024, aproximadamente 41 milhões de pessoas viviam com HIV ao redor do mundo e só no ano de 2024, aproximadamente 1,3 milhão de novos casos de infecção por HIV foram diagnosticados e 640 mil pessoas morreram por causas relacionadas à infecção do HIV. Mesmo com esses números, de 2010 até o momento percebemos alguns progressos, especialmente com queda de novas infecções e mortes relacionadas ao HIV. Estima-se que houve 54% de queda de pessoas que morreram por causas relacionadas ao HIV na última década, porém esse fenômeno não ocorreu de forma homogênea no mundo. Temos um controle efetivo e crescente da infecção, por exemplo, na Europa Ocidental, nos países asiáticos de economia fortalecida e na Austrália. Mas em regiões onde temos desigualdades sociais graves, relacionadas à pobreza, o cenário é completamente diferente, principalmente na África subsaariana, no leste europeu e no sudeste da Ásia, onde as populações são menos assistidas, especialmente em questões de saúde. Mesmo com todo o esforço da UNAIDS, braço da ONU na luta contra o HIV/AIDS, em universalizar o acesso ao tratamento e a testagem gratuita, os desafios ainda são gigantes. No Brasil, a situação é mais controlada devido ao excelente programa de combate a infeção do Ministério da Saúde.

 

- O que temos de avanço em relação a tratamento?

R: Temos hoje um arsenal imenso de drogas antirretrovirais que são usadas para o controle da infecção, mas importante dizer que não é a cura. É um controle da infecção, onde o paciente convive com HIV com uma carga viral indetectável (situação em que não é identificado a vírus no sangue do paciente através de testes de biologia molecular). Nesse contexto, a pessoa vivendo com HIV não transmite o vírus a terceiros por contato sexual. Em um passado não muito distante, precisávamos fazer uma combinação de várias drogas - daí surgiu o termo coquetel anti AIDS que se popularizou ao redor do mundo - para atingir esses resultados. Às vezes, o paciente chegava a tomar até 16 comprimidos por dia para conseguir ter um controle do HIV e isso era um grande problema porque quanto mais comprimidos, maiores efeitos colaterais e menor a adesão à terapêutica do paciente. Avançamos muito ao longo desses mais de 40 anos e hoje temos drogas de altíssima barreira genética, ou seja, drogas que dificilmente o vírus consegue fazer resistência a elas, com posologia mais simples, com tomada de comprimido em menor quantidade e menos vezes ao dia. Hoje podemos inclusive tratar paciente com um único comprimido/dia em algumas situações. Essa evolução terapêutica foi fator decisivo para alcançarmos resultados mais robustos no combate ao desenvolvimento da doença.

 

- Já existe estudos para vacina contra a doença? Se sim, há previsão?

R: Nos últimos anos, algumas pesquisas têm gerado um otimismo, mesmo que cauteloso. Por exemplo, temos no momento dois estudos sendo conduzidos por indústrias farmacêuticas diferentes e com apoio de organizações de combate ao HIV. Em junho desse ano, esses dois estudos mostraram, pela primeira vez, a possibilidade de uma estratégia de vacinação contra o HIV em etapas. São resultados ainda bem preliminares, mas foi possível demonstrar células do sistema imunológico podem ser ativadas para produzirem anticorpos - proteínas neutralizantes de invasores do corpo - contra as variantes do vírus HIV. Esses estudos mostraram que há um potencial intrínsecos células do sistema imunológico humano de produzir esses anticorpos e bloquear a multiplicação/replicação de muitas variantes do HIV. O HIV é um vírus que sofre mutação muito rápido, então existem muitas variantes, o que dificulta ter uma vacina direcionada. Ainda em 2025 fomos surpreendidos com a publicação de um artigo indicando que vacinas experimentais baseadas na tecnologia do RNA, a mesma tecnologia que permitiu que a pandemia de Covid fosse controlada, se mostraram capazes de ativar células do sistema imune para produzirem anticorpos duradouros contra o HIV. Esses resultados são um marco na história da busca de uma vacina pelo HIV, até porque, historicamente, induzir a produção de anticorpos eficazes contra o HIV tem sido um dos maiores obstáculos da pesquisa de vacinas. Com essa evidência, demos um passo importante para que, no futuro talvez não muito distante, a gente possa ter, sim, uma vacina contra o HIV. Essa vacina seria destinada para população que ainda não convive com HIV, para evitar que essas pessoas se contaminem.

 

- Há possibilidade de erradicação da doença no Brasil? Como estamos em relação a isso?

R: Erradicar uma doença não é algo tão simples. Ao longo da história, a única doença que pode ser dita como efetivamente erradicada é a varíola. Tem doenças que não estão em circulação, mas que não podemos considerar erradicado porque na distribuição do tempo e espaço vez ou outra aparece um caso aleatório rapidamente controlado. Falamos ainda em controle, que é o primeiro passo da erradicação, mas é um passo bem incipiente e eu diria que se conseguirmos chegar ao controle efetivo, estaremos muito próximo da erradicação.

 

- Quais os principais grupos de risco para a doença?

R: Não usamos mais o termo grupo de risco, por conta do estigma que você acaba impondo sobre pessoas de determinado segmento ou classe social. Isso acontecia lá na década de 80 e foi responsável por uma disseminação de fake news em torno da doença. As pessoas relacionavam o HIV a práticas homossexuais, homoafetivas, o que fez com que populações de práticas heterossexuais não se protegessem de forma adequada. Vimos então, no início do século 21, uma virada, com mais de 50% das pessoas infectadas sendo pessoas que se declaravam bissexuais e heterossexuais. Até porque sempre se soube que o HIV não poderia estar relacionado a uma única prática sexual. Então o nome grupo de risco foi erradicado do meio acadêmico. O que usamos são comportamentos arriscados, situações que colocam a pessoa em vulnerabilidade e aumentam a chance de infecção. E ela é uma só, que é a prática de sexo desprotegido. Então existem situações que potencializam a possibilidade de infecção, mas grupo de pessoa não. Focamos na prática, não na pessoa.

 

- Quando ela pode ser fatal?

R: Hoje temos claramente uma relação entre o tratamento e longevidade. Tenho pacientes em tratamento que tem mais de 20 anos de infecção por HIV e que têm uma vida normal, mantendo hábitos de vida saudável. Hoje falar em morte por HIV é falar de pessoas que não estão em tratamento ou porque não tiveram acesso, o que é uma perversidade social que envolve o poder público, ou porque assumiram a responsabilidade de não fazer o tratamento por diversas questões.

Quando o paciente tem um diagnóstico, é importante ter uma equipe multidisciplinar para discutir sobre todos os aspectos da vida do paciente, assim, trabalhamos a saúde numa perspectiva holística, não como uma ausência de doença, mas como algo que precisa ser estudado e avaliado sobre vários aspectos, que podem ser sociais, religiosos, psicológicos. Todas essas questões estão ali e quando trabalhadas de forma adequada, permitem que o paciente tenha uma adesão terapêutica.

 

- O quanto os tratamentos disponíveis hoje são eficazes?

R: Os tratamentos hoje são bem eficazes. Temos drogas que atuam de forma muito rápida e segura com poucos efeitos colaterais permitindo atingir o objetivo primário que é tornar o indivíduo indetectável em relação à carga viral, então essas medicações são altamente seletivas com poucos efeitos colaterais com a boa adesão terapêutica porque a quantidade de comprimidos que se toma é muito pequena. Temos visto medicamentos de altíssima potência e segurança.  Não se deve ter medo de fazer o teste, e se diagnosticado, não tenha medo de se tratar.

 

- O tratamento é disponibilizado pelo SUS?

R: Sim, nós temos uma política no Brasil, do Sistema Único de Saúde, de combate e controle do HIV-AIDS, que é referência no mundo todo. O Brasil tem o maior programa de controle da infecção, dos países signatários da ONU. Aqui conseguimos atender toda a população levando teste, diagnóstico, acompanhamento e tratamento gratuito sem interrupção. Têm pesquisadores do mundo todo, principalmente da área social, que buscam o Brasil para entender como um país de dimensões continentais é capaz de ter um programa tão consolidado e organizada juntando pesquisadores, médicos infectologistas, clínicos gerais, profissionais que atuam na assistência primária, médicos de saúde de família. Então sim, se tem alguma coisa que a gente consegue falar com orgulho no Brasil, entre tantas outras, é o programa de controle de infecção do HIV.

 


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