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Estudo discute a relevância do Teste de Turing no mundo atua (imagem: Kohji Asakawa/Pixabay) |
Em artigo publicado na revista Intelligent Computing, o cientista da computação e filósofo Bernardo Nunes Gonçalves afirma que as máquinas já passaram no “Teste de Turing” – ou seja, se mostraram capazes de imitar a cognição humana – e destaca a necessidade de métodos mais robustos de avaliação da inteligência artificial
Em 1950, o matemático britânico
Alan Turing (1912-1954), um dos pioneiros da computação, propôs substituir a
questão “Podem as máquinas pensar?” por um critério operacional mais prático.
Ele idealizou o chamado “jogo da imitação”, no qual um interrogador humano
deveria distinguir, apenas por meio da conversação escrita, se estava
interagindo com outro humano ou com uma máquina. Se a máquina conseguisse
enganar um número significativo de avaliadores, então estaria pensando, segundo
qualquer definição sensata da palavra.
O chamado “Teste de Turing” não
era um teste, no sentido rigoroso da palavra, com protocolos definidos. Era
mais uma provocação filosófica destinada a pôr em xeque a rigidez mental de
seus interlocutores. Mas hoje, 75 anos depois, qualquer usuário de plataformas
de inteligência artificial generativa (IAG), como o norte-americano Chat GPT e
o chinês DeepSeek, sabe que as máquinas passaram no teste: a consistência de
suas respostas e a sofisticação de suas formas de expressão superam, na
verdade, a de muitos interlocutores humanos.
Já vivemos em um dos futuros
descritos pela ficção científica. E o artigo Passed the
Turing Test: Living in Turing Futures, de Bernardo Nunes Gonçalves,
discute a relevância do Teste de Turing no mundo atual. E rastreia o contexto
histórico em que surgiu o conceito, sua influência no desenvolvimento da IAG e
as implicações técnicas, sociais e filosóficas da nova realidade.
Gonçalves é doutor em modelagem
computacional (Laboratório Nacional de Computação Científica, LNCC, 2015) e
filosofia (Universidade de São Paulo, USP, 2021), foi fellow (2023-2024)
do King’s College, da University of Cambridge, no Reino Unido, e atualmente é
pesquisador permanente do LNCC e pesquisador associado do Centro de Inteligência Artificial (C4AI),
um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) constituído por FAPESP e IBM na USP.
Seu artigo foi publicado no periódico Intelligent Computing, do
grupo Science.
“Turing argumentou que a
inteligência humana era, em grande parte, um fenômeno desconhecido e indefinido,
e que a melhor maneira de avaliar a inteligência artificial [IA] seria por meio
do comportamento observável. Sua ideia desafiou a crença na superioridade única
da mente humana e serviu como referência para o desenvolvimento da inteligência
artificial”, diz Gonçalves.
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Alan Turing em 1936, durante período de estudo e pesquisa na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos (fonte: Wikimedia Commons) |
O conceito influenciou a cultura popular. Na ficção científica, o filme clássico 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, trouxe a figura do supercomputador HAL-9000, representando uma IA avançada capaz de passar no Teste de Turing e suscitando questões sobre autonomia e confiabilidade das máquinas. No “mundo real”, duas máquinas fizeram história: em 1997, o supercomputador Deep Blue, da IBM, capaz de analisar até 200 milhões de lances por segundo, derrotou o então campeão mundial de xadrez Garry Kasparov; e, em 2011, o Watson, também da IBM, com processamento de linguagem natural e aprendizado de máquina avançado, venceu dois dos maiores campeões do programa de perguntas e respostas Jeopardy!.
“Uma observação perspicaz de
Turing foi que a inteligência artificial, para ser inteligência, não poderia
depender exclusivamente de uma programação explícita, mas sim de aprendizado
autônomo, semelhante ao do desenvolvimento da inteligência humana. Essa
perspectiva o levou a prever que, no final do século 20, as máquinas
aprenderiam a jogar o ‘jogo da imitação’ de maneira convincente e que a ideia
de ‘máquinas pensantes’ seria natural entre as pessoas mais instruídas”, conta
Gonçalves.
Vale repetir que a maneira
audaciosa como Turing utilizava expressões do tipo “máquinas pensantes” se
baseava no pressuposto de não sabermos, de fato, o que é a inteligência humana.
O artigo argumenta que os
modelos atuais de IAG, baseados em transformadores (transformers) e
aprendizado profundo (deep learning), não apenas imitam a resposta
humana, mas aprendem a melhorar seu desempenho sem depender estritamente da
programação prévia. Seus resultados melhoram com a escala do treinamento,
certas funções não pré-programadas surgem conforme o modelo atinge um ponto
crítico e conseguem sustentar conversas prolongadas de maneira coerente e
convincente para pessoas não especializadas.
A principal inovação dos
transformadores é o mecanismo de atenção, que permite ao modelo focar em
diferentes partes da entrada ao processar um dado específico. Isso os torna
mais eficientes que arquiteturas anteriores, que processavam dados sequencialmente
e, por isso, de forma mais lenta. Quanto ao aprendizado profundo, ele é uma
modalidade do aprendizado de máquina (machine learning), mas se destaca
por permitir que os modelos aprendam diretamente a partir dos dados, sem
necessidade de intervenção humana para extrair características. Os dois
ingredientes, transformadores e aprendizado profundo, sustentam-se sobre redes
neurais, que imitam o funcionamento da circuitaria neuronal humana.
“Stuart Shieber [cientista da
computação da Universidade Harvard, nos Estados Unidos] demonstrou que não é
possível criar uma IA baseada puramente em memorização, pois o volume de
armazenamento necessário para cobrir todas as possibilidades de conversação
seria maior do que o próprio universo conhecido. Isso sugere que as IAs atuais
possuem algum nível de generalização e raciocínio, não se limitando apenas à
repetição de padrões”, argumenta Gonçalves.
Ele também discute as
consequências sociais da evolução da inteligência artificial. E destaca que
Turing não apenas previu que máquinas substituiriam trabalhadores braçais, mas
também foi provocativo ao alertar que os próprios “mestres” poderiam ser
substituídos. Isso significa que a automação não afeta apenas funções
operacionais, mas também profissões intelectuais. “Para evitar que os
benefícios da IA fiquem concentrados nas mãos de poucos, é necessário um debate
mais amplo sobre a distribuição equitativa da riqueza gerada pela automação.
Isso ressoa com a visão de Turing, que acreditava que a tecnologia deveria
servir à sociedade como um todo, e não apenas aos interesses econômicos de uma
elite”, afirma.
Outro ponto crítico abordado no
artigo é a insustentabilidade do modelo computacional atual. O consumo de
energia dos sistemas de IA contemporâneos é gigantesco, contrastando com a
visão de Turing, que defendia um modelo mais natural inspirado no cérebro
humano com seu baixo consumo energético. Segundo Gonçalves, a IA precisa
evoluir para ser mais sustentável e menos dependente de computação intensiva.
O artigo conclui sugerindo que,
à medida que a IA se torna mais sofisticada, se fazem necessárias novas formas
de avaliação, que podem ser inspiradas no Teste de Turing original. E propõe:
protocolos estatísticos rigorosos, para evitar que a IA simplesmente “aprenda a
enganar” os testes tradicionais; testes adversários automatizados, eliminando a
necessidade de juízes humanos e tornando a avaliação mais objetiva; e
verificações baseadas em aproximações probabilísticas, para tornar as
avaliações da máquina práticas e eficientes. “Esses métodos ajudariam a
enfrentar desafios emergentes, como viés nos dados de treinamento, manipulação
adversária e contaminação dos modelos com informações previamente conhecidas”,
sublinha Gonçalves.
É sempre bom reafirmar que o
Teste de Turing foi proposto há 75 anos, quando os primeiros computadores
estavam apenas começando a ser concebidos e fabricados. Alan Turing estava na
vanguarda do processo. O filme O Jogo da Imitação (The
Imitation Game), de 2014, dirigido por Morten Tyldum, conta parte de sua
curta história, ao mesmo tempo grandiosa e trágica. Dentre muitas realizações,
foi ele que decifrou o código de funcionamento da máquina Enigma, considerado
inviolável e utilizado na troca de mensagens da Alemanha nazista. Esse feito
poupou milhares de vidas e contribuiu significativamente para a derrota do
nazifascismo durante a Segunda Guerra Mundial. Mas permaneceu desconhecido por
décadas, porque todo o trabalho foi realizado de forma altamente secreta.
Em 1952, Turing foi condenado
por “indecência grave” devido à sua homossexualidade, que era ilegal no Reino
Unido. Como alternativa à prisão, ele optou por um tratamento hormonal forçado,
que constituía, de fato, uma forma de castração química. Em 7 de junho de 1954,
com apenas 41 anos, foi encontrado morto em sua casa. A causa oficial atribuída
à morte foi suicídio por envenenamento com cianeto. Apenas em 2009 o governo
britânico emitiu um pedido formal de desculpas pela forma como ele havia sido
tratado. E, em 2013, após uma campanha pública, Turing recebeu postumamente o
“perdão real”.
“Já estamos vivendo um dos
‘futuros de Turing’, no qual máquinas são capazes de imitar a cognição humana a
ponto de serem indistinguíveis em certas interações. Isso não significa que a
inteligência artificial tenha atingido sua plenitude. Ainda há desafios
fundamentais a serem resolvidos, como a sustentabilidade computacional, a
equidade na distribuição de benefícios e a necessidade de métodos mais robustos
de avaliação. A visão de Turing permanece mais relevante do que nunca, não
apenas como um critério técnico, mas como um ponto de partida para debates mais
profundos sobre o impacto da IA na sociedade e na humanidade”, conclui
Gonçalves.
Além do financiamento ao C4AI,
o estudo que embasou o artigo recebeu apoio da FAPESP por meio da bolsa de
pós-doutorado e da bolsa de
estágio de pesquisa no exterior concedidas a Gonçalves.
O artigo Passed the
Turing Test: Living in Turing Futures pode ser acessado em: https://spj.science.org/doi/10.34133/icomputing.0102.
José Tadeu Arantes
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/ja-vivemos-em-um-dos-futuros-descritos-pela-ficcao-cientifica-diz-pesquisador/54110
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