Começo com uma historinha que sempre lembro para
explicar estas nossas tropicais plagas. Há, no mundo, quatro modalidades de
sociedade: a primeira é a inglesa, aberta, onde tudo é permitido salvo o que
for proibido; a segunda é a alemã, rígida, onde tudo é proibido salvo o que for
permitido; a terceira é a totalitária, ultra-fechada, de índole ditatorial,
onde tudo é proibido mesmo o que for permitido; e, por último, a brasileira,
onde tudo é permitido mesmo o que for proibido.
Querem um exemplo? A última greve dos
caminhoneiros, que bloqueou o livre trânsito de pessoas e automóveis e deu
prejuízo que alguns estipulam em R$ 60 bilhões até o momento, com consequências
sérias sobre a vida das pessoas – educação, saúde, alimentação, serviços etc. O
fato é que o país retrocedeu passos em seu avanço civilizatório. Pois bem,
multas foram estipuladas, como se viu na decisão do ministro do STF, Alexandre
de Moraes, de determinar que 96 empresas transportadoras pagassem em 15 dias R$
141 milhões pelo descumprimento da liminar que determinava o desbloqueio
imediato de rodovias.
Depois, o TST determinou que os petroleiros, em
greve logo depois, arcassem com multa de R$ 2 milhões por dia.
E o que estamos vendo? A Câmara dos Deputados
avalia anistiar as penalidades impostas, na esteira de um projeto de lei que
regulamenta o transporte rodoviário de cargas no país e cujo relator é o
deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP).
Se isso vier de fato a ocorrer, o Brasil mostra sua
cara sem retoques: a desmoralização das Cortes judiciárias, a desfaçatez, a
hipocrisia dos nossos representantes e, mais, a prova inconteste de que, por
aqui, tudo é possível: transgredir a lei e não ser punido,
descumprir o ordenamento jurídico do país e, em troca, receber aplausos por
conduta ilegal, imoral, restritiva aos valores de nossa democracia. Cai bem
sobre nossa fisionomia institucional aquela frase atribuída a De Gaulle -
o
Brasil não é um país sério. (A frase, na verdade, é de autoria do
embaixador brasileiro na França entre 1956 e 1964, genro do presidente Artur
Bernardes, Carlos Alves de Souza Filho, a propósito da “guerra da lagosta”,
assunto que envolveu uma pergunta que lhe fez o correspondente do JB em Paris,
Luis Edgar de Andrade. O diplomata cochichou aquele dito.)
O fato é que por estas nossas bandas, não é só a
corrupção que suja a veste de políticos, governantes e empresários. A lama se
espalha em uma enxurrada que agrega um amontoado de futricas, politicagem,
grupismo, fisiologismo, desmandos, rasgos da lei maior, a Constituição, malhas
intestinas, projetos de lei com foco no corporativismo, domínio de castas,
desleixo, incúria, desmandos de todos os tipos.
Se amanhã novas greves surgirem, os grevistas
saberão, de antemão, que haverá um político “de espírito cívico” a lhe estender
a mão. Não serão punidos. Ganharão loas. Fico imaginando a reação de um alto
ministro de nossas Cortes ao ver jogada no lixo do desprezo sua decisão de
punir quem não anda nos traçados da lei. Se os malfeitos do nosso cotidiano se
multiplicam é porque os “bem-feitores” da representação política mexem com o
pauzinho que têm às mãos, a “fazeção de leis”. E que ninguém se assuste com as
máfias criminosas que dão ordens de dentro das prisões. A propósito, o
faturamento do PCC pode chegar, este ano, a R$ 800 milhões. Grana que dá para
eleger uma grande bancada.
Gaudêncio Torquato -
jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato