
O câncer de pulmão não pequenas células representa
cerca de 85% dos casos da doença
(imagem: Aakash Dhage/Unsplash)
Resultado do exame pode sair em
dois dias; estudo do Hospital de Amor apoiado pela FAPESP contribui para
aprimorar o monitoramento da doença, mas custo alto ainda é uma barreira
A detecção precoce de
alterações genéticas no câncer de pulmão por meio de biópsia líquida pode se
tornar uma ferramenta importante para acelerar o diagnóstico e orientar o
tratamento de pacientes no Brasil. Um estudo apoiado pela FAPESP e publicado na revista Molecular Oncology mostrou
que é possível identificar mutações relevantes em amostras de sangue de
pacientes com câncer de pulmão não pequenas células (NSCLC, na sigla em inglês)
usando um painel multigênico comercial. A pesquisa foi conduzida no Hospital de
Amor (antigo Hospital de Câncer de Barretos), referência nacional em oncologia,
e avaliou a presença de DNA tumoral circulante (ctDNA) em diferentes grupos de
pacientes, incluindo indivíduos assintomáticos.
O câncer de pulmão não pequenas
células representa cerca de 85% dos casos da doença, sendo o subtipo mais
prevalente. Dentro dele, há diferentes grupos, como o adenocarcinoma e o
carcinoma de células escamosas. O adenocarcinoma, em especial, é marcado pela presença
de mutações que se tornaram alvo de terapias específicas, alterando o curso do
tratamento nos últimos anos. Há pouco mais de dez anos, a sobrevida mediana não
ultrapassava oito meses. Hoje, o cenário é outro: já se fala em sobrevida
global em torno de dois a três anos se o paciente receber terapias-alvo,
podendo chegar a dez anos em alguns casos.
“O adenocarcinoma é o subtipo
do câncer de pulmão que mais se beneficiou do avanço da genômica e, por isso,
ele é o principal alvo do nosso estudo”, explica a pesquisadora Letícia Ferro Leal, cossupervisora do estudo. “Genes como
EGFR, ALK e KRAS têm o que chamamos de ‘acionabilidade’. Isso significa que,
quando identificamos uma alteração dessas no paciente, existe uma droga-alvo
capaz de agir diretamente sobre ela”, diz.
Ao todo, o estudo examinou 32
amostras de plasma de 30 pacientes. A maioria deles não havia recebido nenhum
tratamento anteriormente, mas também foram incluídos pacientes previamente
tratados e quatro participantes de um programa de rastreamento de câncer de
pulmão. Os pesquisadores então usaram um painel comercial desenhado
especificamente para mutações conhecidas no adenocarcinoma e buscaram alterações
em 11 genes relacionados ao desenvolvimento do tumor. O desempenho da técnica
surpreendeu: 65,6% das amostras apresentaram mutações, sendo que essa taxa
chegou a 87,5% entre os pacientes que já tinham passado por alguma terapia.
As mutações mais frequentes
ocorreram nos genes TP53 (40,6%), KRAS (28,1%) e EGFR (12,5%). Embora o TP53
seja o gene mais mutado em diferentes tipos de câncer, ainda não existe uma
droga específica para ele. Já as alterações em EGFR e uma alteração específica
em KRAS (p.G12C) são diretamente acionáveis – no caso de EGFR, com várias
opções de medicamentos já aprovados no Brasil. Uma delas, a mutação EGFR
p.T790M, ligada à resistência ao tratamento, foi identificada em uma das
amostras analisadas.
“Esse tipo de mutação pode
surgir mesmo em pacientes que inicialmente respondem bem ao tratamento. No
entanto, ela costuma ser detectada quando o paciente já apresentou progressão
da doença. O mesmo ocorre em pacientes com mutações em outros genes, tratados
com outras terapias-alvo. É um grande desafio da oncologia”, afirma Leal.
Um dos achados mais marcantes
do estudo ocorreu no grupo de rastreamento: um participante assintomático
apresentou uma mutação no gene TP53 seis meses antes do diagnóstico de câncer.
Para os pesquisadores, isso demonstra o potencial da biópsia líquida como
ferramenta complementar ao rastreamento de populações de risco, especialmente
fumantes e ex-fumantes.
Tempo é
crucial
Na prática clínica, explica a
pesquisadora, o grande diferencial da realização da biópsia líquida para câncer
de pulmão é o tempo. Enquanto a análise convencional do tumor obtido por
biópsia ou cirurgia pode levar semanas entre coleta, processamento da amostra,
avaliação em patologia e liberação do laudo, a biópsia líquida encurta
consideravelmente esse caminho.
“O tempo é um fator crucial
quando falamos em câncer de pulmão. Quando fazemos a biópsia do tecido,
precisamos considerar o tempo que o paciente esperou para conseguir agendar a
biópsia ou a cirurgia. Somente após esse período começa a contar o tempo de
processamento da amostra e de análise molecular. No melhor dos cenários, esse
laudo leva em torno de duas semanas a partir da coleta. Com a biópsia líquida,
fazemos a coleta a qualquer momento e o resultado pode sair em dois dias,
antecipando o início do tratamento”, explica a pesquisadora.
Além da agilidade e redução do
tempo de resposta, o estudo mostrou outra vantagem: o painel utilizado foi
capaz de detectar ctDNA mesmo em amostras congeladas, sem a necessidade de
tubos especiais ou transporte imediato para laboratórios especializados, como
costuma acontecer. Isso amplia a possibilidade de adoção do método em serviços
públicos de saúde, que nem sempre dispõem de estrutura complexa para testes
moleculares.
Custo
ainda é barreira
Apesar dos resultados
promissores, Leal reconhece que a incorporação da biópsia líquida à rotina do
sistema público de saúde no Brasil ainda enfrenta barreiras importantes,
especialmente econômicas. O teste utilizado no estudo custa cerca de R$ 6 mil
por paciente. Embora o valor possa diminuir com o aumento da concorrência entre
empresas de sequenciamento genético, essa quantia ainda é elevada para a maior
parte da população.
No setor privado, diversas
terapias-alvo já estão disponíveis por meio do rol da Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS). No Sistema Único de Saúde (SUS), as opções são escassas e
restritas a alguns centros de referência, sendo que poucos deles conseguem
oferecer testes moleculares rotineiros. “Às vezes, o paciente até tem condições
de pagar pelo teste, mas não consegue custear a terapia, que pode chegar a R$
40 mil por mês. Por isso ainda existem muitos casos de judicialização”, comenta
Leal.
Leal também ressalta que,
embora o painel usado pelos pesquisadores seja altamente sensível (chegando a
ser dez vezes mais sensível do que alguns testes feitos em tecido do tumor), um
resultado negativo não exclui a presença de mutações. “Se a biópsia líquida não
detecta nenhuma alteração, é preciso confirmar com o tecido. Ainda não podemos
substituir completamente a biópsia convencional, são exames complementares”,
afirma a pesquisadora. Isso se deve, em parte, à dificuldade de detecção de
mutações em estágios iniciais da doença, quando o volume de DNA tumoral
circulante é muito pequeno.
Apesar das limitações, a conclusão
dos pesquisadores é que a biópsia líquida tem potencial de acelerar
diagnósticos, orientar de forma mais precisa o tratamento e antecipar decisões
clínicas em pacientes com câncer de pulmão. O estudo reforça que a estratégia é
viável, pode ser incorporada à rotina hospitalar no Brasil e tem condições de
beneficiar pacientes tanto com tumores iniciais quanto avançados.
“Nosso trabalho mostra que é
possível detectar várias mutações ao mesmo tempo, reduzir o tempo de resposta e
usar amostras que não exigem coleta especial. Isso antecipa o início do
tratamento e pode mudar o desfecho do paciente”, resume Leal. A expectativa é
que, com a queda dos custos de sequenciamento e a ampliação da oferta de
testes, o acesso à medicina personalizada no câncer de pulmão se torne cada vez
mais próximo da realidade brasileira.
O artigo Feasibility of
a ctDNA multigenic panel for non-small-cell lung cancer early detection and
disease surveillance pode ser lido em: febs.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/1878-0261.70131.
Fernanda Bassette
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/biopsia-liquida-avanca-como-ferramenta-para-detectar-mutacoes-em-cancer-de-pulmao/56789
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