Reduzir as taxas de mortalidade infantil foi uma
das metas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) no ano 2000,
por meio dos Objetivos do Milênio. De fato, muitos avanços nesse sentido foram
alcançados nas duas últimas décadas em todo o mundo.
“As crianças estão sobrevivendo mais, tanto nos
países desenvolvidos como nas nações em desenvolvimento. Porém, boa parte delas
não está prosperando como poderia e não consegue atingir seu potencial de
desenvolvimento cognitivo e físico. E isso tem uma tremenda implicação para os
países”, afirmou a pesquisadora Helen Raikes, do Colégio de Educação e Ciências
Humanas da University of Nebraska-Lincoln, nos Estados Unidos.
Em uma palestra apresentada na terça-feira (19/9)
durante a FAPESP Week Nebraska-Texas,
Raikes falou sobre como a falta de saneamento básico e de acesso a água potável
de qualidade pode estar na origem de problemas como déficit de estatura e de
outras condições associadas à desnutrição.
“Já está bem estabelecida a relação entre a
ocorrência frequente de diarreia e mortalidade infantil. Porém, estudos
recentes têm mostrado que infecções bacterianas repetidas também podem afetar
as vilosidades intestinais e o perfil da microbiota intestinal – prejudicando a
absorção de nutrientes para o resto da vida”, contou a pesquisadora.
Quando o problema ocorre em períodos de alta
vulnerabilidade, como os primeiros dois anos de vida, os danos podem ser
definitivos. Segundo Raikes, três áreas são particularmente comprometidas: o
desenvolvimento cognitivo, a estatura e o microbioma intestinal [fortemente
relacionado com a saúde metabólica e a imunidade]. Tal condição cria grandes
disparidades no desenvolvimento de crianças de diferentes contextos
socioeconômicos e causa perda de potencial humano”, afirmou a pesquisadora.
Como comentou Raikes, a neurociência tem mostrado
que as experiências que um indivíduo vivencia nos primeiros anos de vida são
incorporadas no organismo e constroem as bases para as experiências futuras. Um
período de desenvolvimento, disse a pesquisadora, é construído com base no
anterior.
Panorama acreano
A importância dos primeiros mil dias de vida para o
desenvolvimento infantil também foi abordada durante a palestra de Marly
Augusto Cardoso, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade
de São Paulo (USP). Ela apresentou, na terça-feira (19/9), resultados de uma
pesquisa feita ao longo de 10 anos (2003-2012) no município de Acrelândia (AC)
com cerca de mil crianças menores de 10 anos.
“O que chama atenção nessa região, em relação ao
cenário nacional, é que a desnutrição infantil – e consequentemente o déficit
de estatura e a prevalência de anemia – não diminuiu tão fortemente como em
outros estados brasileiros. O Acre ainda apresenta indicadores de saúde
infantil bem precários. A ocorrência de diarreia em crianças pequenas, por
exemplo, é bem mais frequente do que em outras regiões”, disse Cardoso.
Ao mesmo tempo, contou a pesquisadora à Agência
FAPESP, é possível observar um ganho de peso excessivo nas crianças em fase
escolar – possivelmente causado pela substituição do padrão alimentar
tradicional pelo moderno, composto principalmente de produtos ultraprocessados.
“Isso configura um cenário de carga dupla de
doenças relacionadas ao estado nutricional: ainda há deficiências não
completamente sanadas e, ao mesmo tempo, risco de ganho excessivo de peso que
predispõe a doenças cardiovasculares e metabólicas na vida adulta”, comentou.
A investigação em Acrelândia foi feita com apoio da FAPESP
durante o doutorado de Bárbara Hatzlhoffer Lourenço, atualmente professora do
Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina (Unifesp).
Atualmente, Cardoso coordena um Projeto Temático que
pretende identificar no município de Cruzeiro do Sul – o segundo mais populoso
do Acre e uma região endêmica para a malária – fatores que podem potencializar
tanto a promoção da saúde na vida escolar e na adolescência como a redução de
fatores de riscos na vida adulta.
O estudo de base populacional, que teve início em
2015, pretende acompanhar os determinantes de saúde materno-infantil desde a
gestação e o parto até o final do segundo ano de vida. Participam cerca de 1,5
mil famílias captadas na única maternidade da cidade, graças à parceria com
agentes comunitários de saúde do Programa Saúde da Família (PSF). Também
colaboram com o estudo docentes e alunos da Universidade Federal do Acre (UFAC)
e da Harvard T.H. Chan School of Public Health.
“O projeto tem muitos eixos. Vamos investigar
deficiências nutricionais nas mães e nas crianças, risco de infecção por
malária e dengue, ganho de peso excessivo precoce, alimentação complementar e
práticas alimentares das mães. Pretendemos também estudar a microbiota
intestinal dos participantes da pesquisa e fazer análises epigenéticas [para
entender como os fatores ambientais estão modulando a expressão dos genes]”,
contou Cardoso.
Análises preliminares em cerca de 500 gestantes do
mesmo município mostrou que 19% delas são adolescentes – índice mais alto que a
média nacional. No total, 24% apresentaram sobrepeso no período
pré-gestacional, 18,7% não ganharam peso suficiente durante a gestação e 59%,
por outro lado, ganharam peso em excesso no período. O índice de anemia no
terceiro trimestre gestacional foi de 17,5% e 13,4% apresentaram deficiência de
vitamina A.
“Algo que já pudemos notar é que a malária gestacional
é um problema negligenciado e sabemos que pode ser uma das causas de baixo peso
no nascimento”, afirmou.
No dia anterior, também durante a programação da
FAPESP Week Nebraska-Texas, Susan Sheridan, diretora do Centro Nebraska de
Pesquisa em Criança, Juventude, Famílias e Escolas, apresentou uma série de
estudos voltados a promover a saúde mental familiar e, desse modo, possibilitar
um melhor desenvolvimento infantil.
Segundo Sheridan, um trabalho colaborativo feito
por pesquisadores do Brasil e de Nebraska concluiu que, quando os pais têm um
relacionamento sólido, as crianças se saem melhor. Essa linha de investigação
busca atualmente identificar intervenções que melhoram os relacionamentos
familiares, como a teleterapia. Mais informações em: http://cehs.unl.edu/cehs/brasil/.
Karina Toledo, de Lincoln
Agência FAPESP