A recente aprovação da tirzepatida (Mounjaro®️) pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para o tratamento da apneia obstrutiva do sono (AOS) em adultos com IMC igual ou superior a 27 kg/m² reacendeu um debate que há anos ronda consultórios, farmácias e conselhos profissionais: afinal, até onde vai a competência do cirurgião-dentista quando o tratamento da apneia envolve terapias sistêmicas, especialmente agonistas de GLP-1?
A discussão ganhou força porque a AOS é um território histórico da Odontologia,
regulamentado pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO) e consolidado pela
literatura científica. Portanto, não surpreende que a nova indicação da
tirzepatida toque diretamente a fronteira regulatória entre abordagens
odontológicas e medicamentos sistêmicos.
É preciso começar pelo básico: a Anvisa regula o produto, não o
profissional.
A Agência não tem competência legal para definir quem pode ou não prescrever
medicamentos; seu papel se limita ao registro, às indicações, à rotulagem e às
regras de dispensação. A delimitação da atuação profissional é atribuição
exclusiva dos conselhos de classe.
Prova disso é que a própria Anvisa, após provocação do SOERGS (Sindicato de
Odontologistas do Rio Grande do Sul), revisou a Instrução Normativa 360/2025 e
retirou a expressão “prescrição médica”, substituindo-a por “sob prescrição”,
reconhecendo expressamente que não lhe cabe restringir a prescrição
odontológica de medicamentos sujeitos à retenção de receita. Ou seja, a
aprovação da tirzepatida para AOS não altera, por si só, o escopo de atuação de
nenhuma categoria profissional.
Do ponto de vista técnico e ético, o CFO já deu a resposta: o dentista pode
prescrever tirzepatida quando essa prescrição estiver inserida no tratamento da
apneia obstrutiva do sono.
Isso exige responsabilidade clínica, domínio farmacológico e,
preferencialmente, atuação interdisciplinar, que, na Odontologia do Sono, não é
recomendação, mas dever ético. Trata-se de uma área com resoluções próprias,
articulada com a Odontologia Hospitalar e amplamente respaldada pela
literatura.
A nova indicação da Anvisa não inaugura nada de revolucionário; apenas
acrescenta uma alternativa farmacológica a um campo terapêutico que já integra
múltiplas abordagens.
Um ponto frequentemente distorcido nesse debate diz respeito à perda de peso.
No contexto da AOS em pacientes com sobrepeso ou obesidade, emagrecer não é
consequência estética, mas parte direta do manejo clínico. Redução de gordura
cervical, diminuição da circunferência do pescoço e melhora dos índices
respiratórios são efeitos desejados e cientificamente documentados. Por isso, o
fato de a tirzepatida promover perda de peso não deslegitima sua prescrição
pelo dentista — desde que o objetivo seja tratar a apneia, e não o emagrecimento
isolado.
A fronteira é clara, técnica e ética: o dentista não prescreve tirzepatida para
perder peso, mas para tratar uma doença respiratória do sono em que a redução
ponderal é componente fisiopatológico do tratamento.
No âmbito das farmácias de manipulação, o cenário também permanece objetivo. A
preparação magistral estéril de tirzepatida continua permitida, desde que o
insumo farmacêutico ativo esteja regularizado e que a farmácia cumpra
rigorosamente normas como a RDC 67/2007, RDC 471/2021, IN 360/2025 e a Nota
Técnica 200/2025. Como substância sujeita à escrituração e retenção de receita,
sua dispensação exige rastreabilidade total no SNGPC e avaliação técnica cuidadosa
do farmacêutico, independentemente da categoria profissional responsável pela prescrição.
Temos observado, aliás, grande preocupação do varejo farmaceutico (farmácias e
drogarias), sobre a possibilidade de aceitar receitas de odontólogos para GLP1.
Isso porque a vigilância sanitária fiscaliza os atos de comércio, seja atraves
da obrigatória escrituração no SNGPC (Sistema Nacional de Gerenciamento de
Produtos Controlados), seja nas inspeções in locu. São muitas as autuações
sanitárias por aceitar prescrições de profissionais não habilitados. Ocorre que
não cabe as farmácias fiscalizar o exercício ético de profissionais de saúde, o
que representa ônus excessivo aos farmacêuticos do varejo.
Em síntese, o arcabouço regulatório atual permite tanto a prescrição quanto a
manipulação da tirzepatida no tratamento da apneia obstrutiva do sono em
pacientes com sobrepeso ou obesidade. A atuação do dentista é legítima quando
há nexo clínico com o manejo da AOS e responsabilidade profissional compatível
com a complexidade terapêutica. E é isso que distingue o exercício ético da
extrapolação indevida. Não há expansão arbitrária do escopo odontológico, mas o
reconhecimento de uma interseção real e bem fundamentada entre terapias
farmacológicas e abordagens odontológicas em distúrbios respiratórios do sono.
No fim, a pergunta relevante não é se o dentista “pode” prescrever tirzepatida,
mas se a prescrição está clinicamente vinculada ao tratamento da apneia. Quando
a resposta é sim, e apenas nesse caso, a atuação não apenas é permitida, mas
coerente com a evolução natural da Odontologia do Sono e com a própria lógica
terapêutica da AOS.
Claudia de Lucca Mano - advogada e consultora empresarial atuando desde 1999 na área de vigilância sanitária e assuntos
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