Minha previsão para 2025 é de que os astrólogos brasileiros tentarão se organizar para serem a aceitos na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e terão chances razoáveis de sucesso. A evidência que apresento é o seguinte trecho da edição mais recente do guia astrológico Almanaque do Pensamento:
“Sol
e Saturno, juntos, reforçam a necessidade de investimentos na educação, nas
universidades e no setor de pesquisas (...) Esse alinhamento indica um tempo de
maior consciência (...) sobre o melhor aproveitamento de talentos
universitários, com ênfase em investimentos na produção de ciência e inovação”.
Forte
indício de que os vates das estrelas finalmente notaram que a única condição sine
qua non para se conquistar respeitabilidade acadêmica no Brasil é dizer, em
tom solene, que a universidade é importante e precisa de mais dinheiro, todo o
resto (incluindo detalhes como bases racionais e validade científica) sendo
perfeitamente negociável. Os exemplos da homeopatia e da psicanálise estão aí, e não me
deixam mentir.
Enfim,
chegou a hora de meu último artigo do ano, aquele que tradicionalmente dedico
às previsões para o Ano-Novo.
Técnica
em ação
O
leitor frequente deste espaço já está familiarizado com a fórmula ideal da obra
profética clássica, composta pelos seguintes ingredientes: quantidade (preveja
muito, quem sabe dá para acertar alguma coisa por sorte?), bom-senso (preveja
coisas perfeitamente razoáveis e esperadas, como uma crise econômica, o
divórcio de uma celebridade), generalidade (diga coisas que podem ser
interpretadas de várias maneiras e aplicadas a diferentes situações),
imprecisão (evite fornecer detalhes claros de tempo, local, use verbos-fuinha como “pode” e “tende”
etc.) e risco (em alguns poucos casos, escolhidos a dedo, viole as regras da
generalidade e da imprecisão: se por acaso você acertar, o impacto será
enorme).
Uma
previsão genérica e imprecisa, quando bem construída, é uma espécie de parasita
que se alimenta da tendência humana de preencher lacunas e imputar sentidos de
forma quase automática a sentenças ou imagens que, a rigor, não querem dizer
nada. O mesmo mecanismo que nos faz ver, digamos, a silhueta de uma santa
católica numa mancha de umidade na parede pode nos levar a concluir que a
seguinte previsão (publicada pelo site Personare ano passado) fazia referência ao time do
Botafogo:
“O
entusiasmo pelo esporte pode encontrar outras formas de se manifestar. Como
Júpiter está conjunto a Urano, é importante também destacar que o lado
repentino de times que podem disparar”.
Uma
leitura atenta, no entanto, mostra que nem sequer o esporte a que a previsão se
refere – “time” pode ser uma referência a basquete, vôlei, futebol de salão e
uma infinidade de outros esportes coletivos – é, de fato, mencionado. E logo no
parágrafo seguinte, a profecia arremata: “Tudo estará mais sujeito a
imprevisibilidade, tanto para surpreendendo para melhor como para,
literalmente, tirar de jogo de uma hora para outra”.
Lidos
em conjunto, os dois parágrafos se reduzem a: algo surpreendente talvez
aconteça em algum esporte. No fim, o que temos é um exemplo do uso de
generalidade e imprecisão para escorar uma obviedade. Não é algo fácil de se
fazer: requer talento e treino.
Ano
passado, comentei que o ingrediente final da profecia clássica – a pitada de
previsões arriscadas – andava
ficando escasso. De tudo que o Personare havia previsto para este ano, a única cláusula
clara o suficiente para que se possa dizer que havia risco de desmentido foi a
seguinte, em referência à cena cultural brasileira:
“Algum
importante fenômeno pode surgir na área do entretenimento, ligado a Gêmeos,
como um novo comediante ou comédia de muito sucesso”.
E
mesmo assim dá para salvar a previsão, talvez, se ampliarmos o sentido de
“entretenimento” para incluir os debates nas eleições municipais. Pablo Marçal
é Áries, Datena, Touro, mas Boulos é de Gêmeos.
Astrologia
comparativa
Um
pequeno estudo conduzido no
meio do ano reafirmou um resultado experimental obtido diversas vezes no passado:
astrólogos raramente concordam em suas interpretações de mapas astrais.
Apresentados aos mesmos dados sobre data, horário de nascimento, posições
planetárias, etc., diferentes astrólogos produzirão leituras curiosamente
divergentes.
Segundo
o livro Tests of Astrology: A Critical Survey of Hundreds of Studies, a
taxa de concordância para características como extroversão ou emotividade, em
mais de 30 testes computados, é pouco maior do que 50%. Com base nisso, resolvi
escolher um signo aleatório e comparar as previsões num domínio específico –
trabalho – em diferentes fontes (método de escolha aleatória: lance de dois
dados de seis faces; correspondência número-signo feita seguindo a sequência
tradicional 1=Áries, 2=Touro, 3=Gêmeos, etc.).
O
signo sorteado foi 6=Virgem. As fontes, o jornal O Globo, o site
Personare (cujo conteúdo é reaproveitado por diversas outras fontes da
internet, incluindo no site da Folha de S. Paulo) e o Almanaque do
Pensamento 2025. Em princípio, pretenda incluir também publicações
internacionais como a edição americana de Cosmopolitan e a francesa de Marie
Claire, mas em Cosmopolitan a única previsão para Virgem, com algum
componente de objetividade, tratava de vida amorosa (“problemas com os seus
‘exes’, plural”). Já a de Marie Claire é uma perfeita obra de arte,
prevendo o tudo e o nada ao mesmo tempo (“ajude-se porque o céu não vai
ajudar”, mas “a vida pode parecer um presente dos céus” e “enfrente desafios
com determinação e resiliência”). Das três fontes restantes, a única a oferecer
uma previsão categórica é O Globo:
"Os
astros revelam que os virginianos que buscam oportunidades de empregos no
exterior podem comemorar, pois 2025 é o ano que isso irá se realizar".
Curiosamente,
embora se comprometa bem menos com afirmações checáveis, Pensamento
parece apontar numa direção diferente:
"No
campo profissional, 2025 será de oportunidades de crescimento por meio de uma
abordagem meticulosa e estruturada do que já está em construção (...) Evite
mudanças bruscas ou impulsivas nesse campo; siga com estabilidade, superando
desafios".
Já
Personare é tão sucinto quanto genérico:
"Explorar
novas habilidades tende a trazer oportunidades e potencializar mudanças de
carreira".
O
que tirar disso tudo? Há uma infinidade de modos de ver essas previsões como
compatíveis ou incompatíveis entre si; como de costume, o verdadeiro trabalho
acontece na mente do leitor, que inconscientemente vai preenchendo lacunas e
amarrando significados de acordo com seus preconceitos, predileções,
inclinações etc.
O
discurso profético tem uma instabilidade intrínseca – raramente separa o
sentido próprio do figurado – que costuma soar como profundidade, mas é apenas
esperteza. O que fica claro é que as fontes não estão dizendo a mesma coisa. As
previsões talvez sejam compatíveis, mas certamente não são convergentes.
A
única surpresa é a previsão arriscada publicada por O Globo. Prometer
emprego no exterior para 1/12 da população parece um risco e tanto. Mas será?
Num universo de oito milhões de pessoas (número estimado de virginianos na
população economicamente ativa do Brasil), algumas haverão de receber
ofertas de trabalho fora do país. Dessas, as que tiverem lido a previsão e se
lembrarem dela talvez fiquem bastante impressionadas. Quanto às demais... bem,
vida que segue, não é mesmo?
Aniversário
Seria
injusto encerrar a série de colunas de 2024 sem relembrar o aniversário de 200
anos de uma medida legal que mudou radicalmente o curso da astrologia tal como
praticada no Ocidente: a entrada em vigor na Inglaterra, em 1824, da Lei contra
Vadiagem (“Vagrancy Act”).
Essa
lei determinava, entre outros casos, a punição de “todas as pessoas que,
fingindo ou alegando prever o futuro, ou usando qualquer meio, dispositivo ou
técnica oculta, por quiromancia ou de qualquer outra forma, enganem ou
perturbem os súditos de Sua Majestade”.
Dezenas
de astrólogos britânicos foram presos ou multados ao longo do século 19 por
causa da norma. Policiais chegavam a armar operações relativamente sofisticadas
para pegá-los em flagrante, no momento em que começavam a falar sobre o futuro
com o “cliente” (na verdade, um detetive disfarçado). Em 1898, a lei recebeu
uma emenda que incluiu, no rol de comportamentos proibidos, prostituição e
relações homossexuais, o que – dado o clima moral da Era Vitoriana –
acrescentou uma camada extra de estigma social às pessoas processadas sob o “Vagrancy
Act”.
Como
uma espécie sofrendo forte pressão seletiva, os astrólogos britânicos
adaptaram-se às novas condições, e a astrologia inglesa foi deslocando seu foco
da previsão de eventos (“você vai conhecer um moreno atraente”) para a
interpretação de personalidade (“você é calma e comedida por fora, mas insegura
e ansiosa por dentro”), tendência que se universalizou: as previsões jamais
desapareceram, mas graças ao processo iniciado pela polícia inglesa duzentos
anos atrás, é a astrologia como "teoria da personalidade" que domina
as conversas sobre o assunto neste século 21.
Carlos
Orsi - jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O
Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia"
(KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura
Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto),
obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7
Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)
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