O uso
indiscriminado de antibióticos para o tratamento de infecções como a
bacteriúria assintomática, por exemplo, também vem impulsionando o
desenvolvimento de superbactérias
O
uso incorreto e excessivo de antibióticos contribui para a formação de
bactérias cada vez mais fortes e letais. Segundo estimativa da Organização
Mundial de Saúde (OMS), a resistência bacteriana vai provocar, até 2050, a
perda de 10 milhões de vidas em todo o mundo, o que significa uma morte a cada
três segundos1,2. Em 2019, a OMS indicou a
resistência de bactérias a antimicrobianos como um dos principais problemas de
saúde pública do século XXI e uma das 10 principais ameaças à saúde pública
global3.
Estudos
no Brasil e no exterior mostram que a prescrição exagerada de antibióticos
durante a pandemia do coronavírus agravou o problema: mais de 70% dos pacientes
internados por Covid-19 receberam antibióticos4,5.
Outro fator que vem contribuindo para o aumento da resistência bacteriana na
população é o uso indiscriminado de antimicrobianos de amplo espectro para o
tratamento de infecções leves, como as do trato urinário baixo, como as
cistites, por exemplo, o que leva à seleção de cepas de bactérias cada vez mais
resistentes.
“A
medicina é muito dinâmica e antibióticos que eram prescritos há cinco anos hoje
não são mais recomendados da mesma maneira. Isso porque as bactérias têm se
tornado mais resistentes, sem falar que alguns desses medicamentos podem
provocar graves problemas musculares e do sistema nervoso”, ressalta a
ginecologista e obstetra do Conjunto Hospitalar do Mandaqui, Dra. Patrícia de
Rossi.
Professora
de Medicina na capital paulista, Dra. Patrícia explica que um conjunto de
recomendações com as evidências brasileiras e mundiais mais atuais sobre o
tratamento da infecção urinária estão no Consenso, publicado em 2020, por
quatro importantes associações médicas: SBI (Sociedade Brasileira de Doenças
Infecciosas), Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e
Obstetrícia), SBU (Sociedade Brasileira de Urologia) e SBPC/ML (Sociedade
Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial). O documento elenca os
medicamentos que devem ser priorizados para o tratamento das infecções do trato
urinário (ITU), considerando-se o perfil de efeitos colaterais ou a maior
chance de induzir resistência bacteriana, como as quinolonas6.
“O
uso empírico de antimicrobianos de amplo espectro para infecções leves
contribui para a seleção de cepas cada vez mais resistentes, limitando as
opções terapêuticas para casos graves com infecção sistêmica”, aponta o
relatório, logo em sua introdução.
Infecção do trato urinário (ITU)
A
infecção urinária afeta, anualmente, mais de 10% das mulheres adultas, sendo
que mais da metade da população feminina terá ao menos um episódio sintomático
durante a vida7. Após a primeira
ocorrência, 24% das mulheres jovens serão novamente acometidas pelo problema no
intervalo de seis meses8. “Mulheres têm fatores
anatômicos que facilitam com que as bactérias saiam do canal intestinal e subam
pela uretra (canal do xixi), se prendendo na bexiga e causando infecção. Isso
sem falar no comprimento do canal da uretra feminina que é quatro vezes menor
do que nos homens, muito mais fácil para a bactéria escalar”, explica o
urologista Dr. João Antônio Pereira Correia, que assina o Consenso junto com a
ginecologista Dra. Patrícia Rossi.
A
infecção do trato urinário pode se manifestar de três maneiras diferentes: com
a presença de bactérias no trato urinário, mas sem reação inflamatória, que é
chamada de bacteriúria assintomática; na forma de cistite,
a inflamação da bexiga, com manifestação de dor, desconforto abdominal e
ardência ao urinar, bastante comum nas mulheres; e como pielonefrite,
que é a infecção renal, forma mais grave da doença.
O
Consenso das sociedades de especialistas defende que a bacteriúria
assintomática não deve ser tratada, com exceção de gestantes, porque aumenta o
risco de parto prematuro, e antes de algum tipo de cirurgia ou instrumentação
do canal urinário. “Se insistirmos em tratar uma bactéria que está na bexiga,
sem causar nenhum desconforto no paciente, ou apenas um cheiro forte na urina,
prescrevendo antibióticos para bactérias cada vez mais incomuns, muitas vezes
até por via endovenosa, podemos estar tratando desnecessariamente, gerando
risco de danos e de resistência bacteriana, quando poderíamos optar pela
indicação do aumento da ingestão de líquidos para solucionar o problema”,
recomenda Patrícia de Rossi.
Já
para o tratamento da cistite, seja aguda ou de repetição, o relatório das
sociedades aponta a fosfomicina trometamol (em dose única) e a nitrofurantoína
(100 mg, a cada 6 horas, durante cinco dias) como melhores opções terapêuticas.
“As duas medicações têm boa eficácia e, como são utilizadas somente para a
infecção urinária, os índices de resistência bacteriana são muito baixos. A
fosfomicina ainda tem a vantagem da dose única, em sachê para diluição em água,
o que facilita porque muita gente tem dificuldade para engolir comprimidos,
ainda mais em horários desconfortáveis, por vários dias”, ressalta o médico.
“A
fosfomicina, além da praticidade da posologia, alcança concentrações urinárias
altas muito rapidamente, livrando a paciente dos sintomas e das bactérias.
Também não é usada na indústria veterinária, outro fator que evita a
resistência bacteriana, já que não vai estar presente na carne que a gente
come, e tem a vantagem de permanecer na urina por alguns dias, estendendo o
tempo de atuação contra as bactérias”, acrescenta Dr. João Antônio.
O urologista diz
que nos casos de cistite de repetição (ITU recorrente), além do antibiótico, é
preciso observar algumas medidas comportamentais na mulher, como, por exemplo,
a ingestão de líquidos, se tem o hábito de prender o xixi, se o intestino é
preso, a forma de higienização após ida ao banheiro e se faz uso de
espermicidas, o que pode colaborar com a contaminação local. “Quando você bebe
mais água, em teoria, você está sempre lavando a bexiga. Com o aumento do fluxo
urinário, você evita que essa bactéria tenha tempo de se fixar na bexiga,
porque a infecção só ocorre quando a bactéria se prende na bexiga”, afirma.
Referências:
1.SBPC/ML.
OMS alerta contra bactérias super-resistentes. Disponível em: Link. Acessado em 19/09/2022.
2. Kumarasamy KK,
Toleman MA, Walsh TR, et al. Emergence of a new antibiotic resistance mechanism
in India, Pakistan, and the UK: a molecular, biological, and epidemiological
study. Lancet. 2010;10(9):597-602. Disponível em: Link.
Acessado em 19/09/2022.
3. OPAS. Dez
ameaças à saúde que a OMS combaterá em 2019. Disponível em: Link
Acessado em 19/09/2022.
4. Huttner B,
Catho G, Pano-Pardo JR, et al. COVID-19: don’t neglect antimicrobial
stewardship principles! Clin Microbiol Infection. 2020;26(7):808-810.
5. Fiocruz.
Detecção de bactérias resistentes a antiióticos triplicou na pandemia.
Disponível em: Link.
Acessado em 19/09/2022.
6. Rossi P,
Cimerman S, Truzzi JC, et al. Joint report of SBI (Brazilian Society of
Infectious Diseases), FEBRASGO (Brazilian Federation of Gynecology and
Obstetrics Associations), SBU (Brazilian Society of Urology) and SBPC/ML
(Brazilian Society of Clinical Pathology/Laboratory Medicine): recommendations
for the clinical management of lower urinary tract infections in pregnant and
non-pregnant women. Disponível em: Link Acessado em 19/09/2022.
7. Fihn SD.
Prática clínica. Infecção aguda do trato urinário descomplicada em mulheres N
Engl J Med. 2003;349:259-266.
8. Nicolle LE. Atualização
em infecção do trato urinário adulto. Curr Infect Dis Rep. 2011;13:552-560
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