Metodologia desenvolvida por grupo da USP e colaboradores permite rastrear em tempo real a soroprevalência da população a um patógeno – o SARS-CoV-2, no caso do estudo publicado na revista eLife. Resultados oferecem um “retrato” do primeiro ano da COVID-19 no Brasil (foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)
Pesquisa publicada na revista
científica eLife concluiu ser possível
calcular a proporção da população previamente infectada (soroprevalência) por
SARS-CoV-2 utilizando amostras de doadores de banco de sangue. Com os
resultados, além de montar uma espécie de “retrato” da epidemia de COVID-19 no
Brasil durante o primeiro ano, os pesquisadores apontam que a nova metodologia
pode ser aplicada para rastrear outros tipos de doenças infecciosas e calcular
a imunidade coletiva.
Atualmente,
os cálculos de soroprevalência são realizados usando amostras aleatórias da
população, método considerado mais caro, difícil de ser feito de forma
periódica e em tempo real. Esse tipo de monitoramento é importante para
entender as características de uma epidemia e estruturar políticas públicas,
detectando, por exemplo, os locais onde as medidas de prevenção e tratamento
estão funcionando.
Cientistas do Centro Conjunto Brasil-Reino Unido de Descoberta,
Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE)
testaram 97.950 amostras de doadores de sangue para anticorpos do tipo
imunoglobina G (IgG) das oito capitais mais populosas – Belo Horizonte,
Curitiba, Fortaleza, Manaus, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. O
período analisado foi de março de 2020 ao mesmo mês de 2021.
Os
resultados apontaram que a epidemia de COVID-19 foi heterogênea no Brasil,
infectando populações diferentes em momentos distintos. Em linhas gerais, a
doença começou atingindo primeiro homens e jovens.
“No início, algumas linhas de investigação achavam que todos se
infectavam ao mesmo tempo, mas mostramos que isso não é verdade. Em termos de
retrato da epidemia concluímos que houve uma heterogeneidade extrema no Brasil,
com diferenças de infecção por grupos e uma variação extensiva da taxa de
letalidade. Esse era um resultado que não esperávamos”, disse à Agência FAPESP o pesquisador Carlos Augusto Prete Junior,
da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), autor
correspondente do artigo.
O estudo foi parte do doutorado de Prete Junior, que tem como orientador
o professor Vitor Heloiz Nascimento,
da Poli, e como coorientadora Ester Sabino,
professora da Faculdade de Medicina da USP e responsável pelo CADDE no Brasil.
Ambos também são autores do trabalho, que teve apoio da FAPESP por meio
do CADDE e
da bolsa concedida
a Prete Junior, além de contar com financiamento do Instituto Todos pela Saúde.
Participaram ainda cientistas do Imperial College London (Reino Unido) e da
Universidade de Oxford.
Recentemente, em outro artigo publicado na revista Vaccines, o grupo já havia demonstrado, com base em
análise de amostras de bancos de sangue, que foi possível prever a transmissão
da variante delta (detectada na Índia em 2020 e originalmente chamada
B.1.617.2) no Brasil. Nesse caso, eles mediram a quantidade de anticorpos IgG
da população fazendo ensaios de micropartículas de anti-S, ou seja, para
detectar anticorpos capazes de se ligar à proteína Spike do coronavírus. Com isso, conseguiram
relacionar a proteção da vacina a casos da variante delta e ao nível de mortalidade
(leia mais em: agencia.fapesp.br/39533/).
Metodologia
A epidemia
de COVID-19 no Brasil foi uma das mais significativas do mundo – até o início
de outubro de 2022 haviam sido registrados mais de 34,7 milhões de casos e 687
mil mortes acumuladas pela doença. No entanto, esses números escondem as
diferenças da epidemia entre regiões e subgrupos da população, além de não
informar a proporção da população previamente infectada pelo vírus. Estimar
essa proporção é importante para prever o impacto de futuras ondas da epidemia
causadas por novas variantes.
Na pesquisa, os cientistas estimaram a soroprevalência ao longo do tempo
para as oito capitais usando amostras de doadores de sangue para obter
estimativas desagregadas por idade e sexo. Também fizeram estimativas para as
taxas de letalidade por infecção específicas por idade – calculando a chamada
IFR (sigla em inglês para infection fatality rate),
definida como o número de óbitos por infecção – e para as taxas de
internação por infecção para essas cidades.
Cada um
dos oito bancos de sangue tinha uma cota mensal de mil amostras testadas. Para
serem representativas, elas foram selecionadas de modo que a distribuição
espacial da localização de residência dos doadores correspondia à divisão da
população por zonas administrativas de cada município.
Como a
norma brasileira prevê que as amostras de doação de sangue devem ser guardadas
por seis meses, os pesquisadores conseguiram selecionar e testar amostras
congeladas entre fevereiro (antes do início da pandemia no país) e julho de
2020. Depois disso, passaram a ser selecionadas e testadas em tempo real.
Foram
aplicados testes que detectam anticorpos IgG contra o nucleocapsídeo, uma
proteína presente no SARS-CoV-2. No entanto, este tipo de teste pode apresentar
ao longo do tempo uma queda da sensibilidade de detecção dos anticorpos. Ou
seja, à medida que a epidemia progredia, a proporção bruta de indivíduos com
resultado de teste positivo diminuía, subestimando a taxa real de infecção.
Para
corrigir essa queda de anticorpos foi desenvolvido um modelo Bayesiano de
sororeversão baseado em dados de doadores de repetição, ou seja, de indivíduos
que doam sangue várias vezes por ano, além de uma coorte de doadores de plasma
convalescentes positivos para SARS-CoV-2 sintomáticos não hospitalizados. “Isso
foi importante porque alguns trabalhos no início da pandemia propuseram
corrigir somente pelos doadores de plasma. Mostramos, porém, que os doadores de
repetição são mais representativos da população de cada município”, explicou
Prete Junior.
O pesquisador lembra que esse modelo não chegou a ser aplicado no
trabalho publicado pelo
grupo na revista Science, em dezembro de 2020, com
informações do banco de sangue de Manaus porque à época não havia dados
suficientes. Naquele estudo, coordenado por Sabino, foi estimado que 76% dos
manauaras já tinham imunidade contra o novo coronavírus, porém antes da entrada
de outras variantes do SARS-CoV-2, como a gama (P.1), depois considerada mais
agressiva e letal (leia mais em: agencia.fapesp.br/34958/).
“Logo
depois que publicamos o artigo, houve a segunda onda de COVID-19 no Brasil. À
época muitos achavam que não havia reinfecção. Agora confirmamos que é possível
usar as amostras de doadores de sangue para o cálculo de soroprevalência para
monitorar outras doenças, desde que sejam feitos ajustes, como a correção da
sororeversão e a estimativa da taxa de ataque para cada grupo por idade e sexo
utilizando amostras espacialmente representadas”, completa.
Os
resultados mostraram que a taxa de ataque do SARS-CoV-2 em dezembro de 2020, antes
de a gama ser dominante, variou de 19,3% em Curitiba a 75% em Manaus. A
soroprevalência foi consistentemente menor em mulheres e doadores com mais de
55 anos.
As cidades
com maior soroprevalência também tiveram maior mortalidade (número de óbitos
por habitante). Entre 1º de março de 2020 e 31 de março de 2021, a taxa de
mortalidade padronizada por idade variou de 1,7 óbito por 1.000 habitantes em
Belo Horizonte a 5,3 mortes por 1.000 em Manaus, que teve o dobro da
mortalidade de Fortaleza, a cidade com a segunda maior proporção de mortes
entre as analisadas.
A taxa de
letalidade por infecção (IFR) também diferiu entre as cidades, variando de
0,24% em Manaus a 0,54% em Curitiba, e a IFR específica por idade aumentou
consistentemente. Para evitar o problema da subnotificação de óbitos por
COVID-19, a IFR foi estimada usando o total de mortes por infecção respiratória
aguda grave, excluindo as mortes por SRAG causadas por outras etiologias.
Manaus
A gama surgiu em
novembro de 2020 e sua prevalência entre as demais variantes cresceu rapidamente para 87%
em 4 de janeiro de 2021, com alta proporção de reinfecções. Por isso, a IFR e a
taxa de ataque foram estimadas separadamente para a segunda onda de SARS-CoV-2
em Manaus, quando a gama era dominante.
O estudo
mostrou que a proporção da população infectada na segunda onda de Manaus foi de
até 37,5%, comparada a 75% na primeira onda. A taxa de internação por
infecção cresceu durante a segunda onda na capital amazonense, sugerindo
aumento da severidade da doença provocada pela variante em comparação às
anteriores.
A maior
penetração da COVID-19 associada ao colapso do sistema de saúde em Manaus fez
com que a taxa de letalidade por infecção da gama fosse ao menos 2,91 vezes
maior do que na primeira onda.
O artigo SARS-CoV-2 antibody dynamics in blood donors
and COVID-19 epidemiology in eight Brazilian state capitals: A serial
cross-sectional study pode ser lido em: elifesciences.org/articles/78233#content.
Luciana
Constantino
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/amostras-de-bancos-de-sangue-podem-ser-usadas-para-monitorar-a-evolucao-de-epidemias-mostra-pesquisa/39884/

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