Pesquisadores brasileiros acompanharam 1.905 crianças durante sete anos e analisaram 22 fatores de risco que podem ter impacto no desenvolvimento humano. Dados foram publicados na revista Scientific Reports (foto: Agência CNJ de Notícias)
Combater a pobreza durante a infância
poderia reduzir em quase um quarto o risco de o jovem cometer crime, de acordo
com pesquisa realizada no Brasil e publicada na revista Scientific
Reports. Uma das inovações do estudo é o método adotado: foram analisados
22 fatores de risco que podem ter impacto no desenvolvimento humano e
acompanhadas mais de 1.900 crianças por um período de sete anos, até chegarem à
juventude.
Os cientistas concluíram que uma medida
ampla de pobreza, que envolvia baixa escolaridade do chefe da família, baixo
poder de compra e limitado acesso a serviços básicos, foi o único fator
relacionado à criminalidade que poderia ser prevenido. O cálculo usou o chamado
PARF (sigla em inglês para fator de risco atribuível à população), que aponta
possível redução de envolvimento com crime caso haja uma intervenção precoce
bem-sucedida nos indicadores de risco detectados na infância.
Em um cenário sem pobreza, 22,5% dos
casos criminais de jovens poderiam ter sido evitados. Por outro lado,
exposições perinatais, como gravidez não planejada, prematuridade, filhos de
mães fumantes ou de usuárias de álcool não apresentaram nenhuma relação com
crimes no futuro.
"É preciso ter uma visão integral
do jovem que entra na criminalidade para tentar entender as circunstâncias que
o levaram a essa situação. Por isso, procuramos considerar vários fatores que
podem ser prevenidos", explica a pesquisadora Carolina Ziebold, do
Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e
primeira autora do artigo. Ziebold teve apoio da FAPESP
durante o doutorado e também recebeu bolsa Jovem Talento Pesquisador do
Programa de Internacionalização da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes).
Para o professor da Unifesp Ary Gadelha, orientador
de Ziebold e coautor do artigo, uma das diferenças desse estudo foi o uso de
uma medida complexa da pobreza, para além da renda das famílias.
“Analisar as condições de moradia e de
acesso a políticas públicas é uma forma mais completa para entender a pobreza.
Isso nos leva a apontar que a solução não passa apenas pela melhoria da renda.
Uma série de adversidades enfrentadas por essas crianças vai se traduzir
na vida adulta em maior dificuldade a acesso a um emprego, nível educacional
mais baixo, entre outros”, afirma Gadelha à Agência FAPESP.
A pesquisa utilizou uma abordagem
epidemiológica chamada “estudo de associação ampla”, que é bastante empregada
em genética sob o nome Genome Wide Association Studies (GWAS), mas pouco
aplicada à criminalidade.
O método matemático explora uma ampla
gama de exposições potenciais relacionadas a um único resultado, usando uma
abordagem livre de hipóteses. Nesse caso, os cientistas trabalharam com as
múltiplas exposições modificáveis – perinatais, individuais, familiares e
escolares – associadas à criminalidade juvenil para identificar novos alvos
potenciais para a prevenção do fenômeno. Quando um fator de risco significativo
é apontado, como foi a pobreza, pode ser um alvo de políticas de prevenção.
Outra pesquisa também conduzida por
Ziebold com a mesma coorte e publicada em dezembro de 2021 já havia mostrado
uma associação entre pobreza infantil e maior propensão para desenvolver
transtornos mentais externalizantes na juventude, especialmente entre mulheres.
Os pesquisadores concluíram que a pobreza e a exposição a situações
estressantes, entre elas mortes e conflitos familiares, são fatores de risco
evitáveis que precisam ser enfrentados na infância para reduzir o impacto de
transtornos mentais na fase adulta (leia mais em: agencia.fapesp.br/37588/).
Resultados
No artigo, o grupo destaca que, embora
a pobreza na infância tenha sido o único fator de risco significativamente
associado à criminalidade entre jovens, a maioria dos pobres no início do
estudo não teve envolvimento com criminalidade na sequência.
“Uma preocupação foi a de não criminalizar
a pobreza, mas mostrar que é um fenômeno complexo, cuja exposição do indivíduo
a essa situação ao longo da vida gera uma tragédia social. O fenômeno da
criminalidade é uma questão social e, possivelmente, somente a punição no caso
dos jovens não é adequada. É preciso criar possibilidades reais de reabilitação
e dar oportunidades de vida”, completa Gadelha.
Foram entrevistados 1.905
participantes, tanto na linha de base (com idade média de 10 anos) como na
avaliação realizada sete anos depois (idade média de 17,8 anos). Desse total,
4,3% dos jovens relataram envolvimento criminal. Entre os tipos mais comuns de
crimes cometidos estão roubo, tráfico de drogas e crimes violentos, incluindo
um homicídio e uma tentativa de homicídio.
Esses participantes são do Estudo
Brasileiro de Coorte de Alto Risco para Transtornos Psiquiátricos na Infância
(BHRC), uma pesquisa de base comunitária que desde 2010 segue 2.511 famílias
com crianças e jovens, à época com idades entre 6 e 10 anos, em Porto Alegre
(RS) e São Paulo. Eles participaram de três etapas de avaliação, sendo a última
entre 2018 e 2019 – uma nova fase foi iniciada neste ano e deve terminar em
meados de 2024.
O BHRC, também conhecido como Projeto Conexão - Mentes do Futuro, é
considerado um dos principais acompanhamentos sobre riscos de transtornos
mentais em crianças e adolescentes já desenvolvidos na psiquiatria brasileira.
É realizado pelo Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para a
Infância e Adolescência (INPD), apoiado pela
FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).
O instituto, com mais de 20
universidades brasileiras e internacionais, tem como coordenador-geral o
professor do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (FM-USP) Eurípedes Constantino Miguel Filho.
Impactos
Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância
(Unicef) divulgado em março deste ano mostrou que crianças e adolescentes
continuam sendo os mais afetados pela pobreza no Brasil – o dobro em comparação
aos adultos.
Entre 35% e 45% das crianças e jovens
brasileiros, dependendo da faixa etária, viviam com menos de US$ 5,50 ao dia em
2020. Se considerada a pobreza extrema (viver com menos de US$ 1,90/dia), eram
cerca de 12%.
Além disso, no final de 2021, a
insegurança alimentar atingiu recorde no Brasil, superando a média global e
afetando mais mulheres, famílias pobres e pessoas entre 30 e 49 anos. Segundo
dados divulgados pelo Centro de Políticas Sociais do FGV Social, a taxa passou
de 17% em 2014 para 36% no ano passado, quando a média global foi de 35%.
“Sabemos que os impactos econômicos da
pandemia ainda não foram totalmente sentidos, como a insegurança alimentar, a
falta de acesso a escolas... A exposição das crianças a adversidades ainda será
sentida no futuro”, diz Ziebold.
A pesquisadora destaca ainda que serão
necessários outros estudos para entender como as vulnerabilidades dos locais
onde as crianças moram podem influenciar a criminalidade praticada por jovens.
“Esse tipo de fator tem sido observado em pesquisas em outros países, como nos
Estados Unidos, onde aumentam as chances de o jovem cometer crimes se eles
morarem em bairros sem estrutura ou com gangues. Esse é um tema para novas pesquisas.”
Cerca de 46 mil jovens em conflito com
a lei foram atendidos pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(Sinase), em 2019, no Brasil.
O artigo Childhood individual
and family modifiable risk factors for criminal conviction: a 7-year cohort study
from Brazil pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41598-022-13975-8#Sec3.
Luciana Constantino
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/combate-a-pobreza-na-infancia-reduz-em-quase-um-quarto-o-risco-de-jovem-cometer-crime-aponta-estudo/39617/
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