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terça-feira, 27 de setembro de 2022

Crise climática e pressão antrópica estão levando o Pantanal ao desequilíbrio

Paisagem da Baixa Nhecolândia, no Pantanal. A macrorregião abriga a maior planície inundável do planeta (foto: Mario Luis Assine/Unesp)

 

Com 150 mil quilômetros quadrados, o Pantanal ocupa área equivalente a 1,8% do território nacional, estendendo-se pelos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Misto de campos abertos, cerrados e florestas, a macrorregião abriga a maior planície inundável do planeta e compõe, juntamente com a região do Chaco, situada mais ao sul, um complexo de áreas úmidas com grande biodiversidade, que fornece serviços ecossistêmicos e culturais para o Brasil, a Bolívia e o Paraguai.

Mas, assim como a Floresta Amazônica e o Cerrado, o Pantanal vem sendo fortemente pressionado pela expansão da agropecuária. E, nos últimos anos, foi palco de um número sem precedentes de incêndios – a maioria deles provocada pela ação humana, com o objetivo de aumentar as áreas agriculturáveis e as pastagens (leia mais em: revistapesquisa.fapesp.br/o-pantanal-pede-agua/).

Um novo estudo, que procura dar conta da complexidade dos processos naturais que ocorrem no Pantanal e que se tornaram mais complexos ainda nos anos recentes devido à crise climática global e à ação antrópica, foi publicado no Journal of South American Earth Sciences por dois veteranos na investigação científica da região: Ivan Bergier e Mario Luis Assine.

Bergier, pesquisador da Embrapa Pantanal, em Corumbá (MS), estuda a região há 15 anos, e Assine, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, há mais de 30 anos.

“Neste novo estudo, dividimos o Pantanal em seções, que chamamos de compartimentos funcionais, para mostrar como essas áreas se comportam diferentemente em função da hidrologia: áreas que secam mais depressa, áreas que só recebem água da chuva, áreas que combinam águas da chuva e dos rios. E como esse processo natural e recorrente está sendo fortemente afetado agora pelo aquecimento global e pela ação humana nos entornos e no interior do próprio Pantanal”, conta Assine à Agência FAPESP.

Conforme o artigo, a intensidade das chuvas no verão e o número de dias secos no outono-inverno têm aumentado consistentemente, possibilitando prever uma ampliação da descarga fluvial e da carga de sedimentos nas estações chuvosas e a ocorrência de déficits hídricos nas estações secas. “Tal cenário indica ciclos de seca extremos em todas as formas de relevo funcionais autoafins, particularmente em lobos [pronuncia-se ‘lóbos’] deposicionais abandonados que dependem exclusivamente da água da chuva, enquanto extremos de intensidade de chuva nas cabeceiras dos rios podem amplificar os riscos de avulsões em grande escala em lobos ativos dos megaleques fluviais”, sintetiza o texto.

Para entender os significados de expressões como “relevos autoafins”, “lobos abandonados”, “lobos ativos” e “megaleques fluviais”, é preciso saber um pouco mais sobre as peculiaridades geomorfológicas do Pantanal.

Existe a ideia equivocada de que o Pantanal seja uma estrutura homogênea, formada por pântanos. Mas não é assim. “O Pantanal é uma extensa área inundável, devido a uma série de características geológicas da paisagem. Trata-se de uma depressão morfológica, uma bacia sedimentar, sujeita a anos de maior inundação e anos de menor inundação, associados a períodos de maior ou menor precipitação. Não é baixa unicamente porque houve erosão. É baixa também devido ao rebaixamento tectônico, com terremotos que ainda ocorrem na área. Já chamei o Pantanal de dádiva geológica”, informa Assine.

Essa história geológica criou uma vasta extensão de terra extremamente plana, com altitude média de apenas 100 metros. E essa planície é muito suscetível ao que acontece no entorno, tanto na parte leste, no Planalto Maracaju, associado à vegetação do Cerrado, quanto na parte norte, no Planalto de Parecis, já na transição para a Floresta Amazônica. Os rios que descem das terras altas e trazem sedimentos para a planície são muito diferentes dos usuais. Não são rios confinados em vales. Mas rios que se abrem, ramificam e distribuem suas águas por meio de muitos rios menores ou riachos, que formam estruturas descendentes semelhantes a leques. Por serem vastas, essas estruturas são chamadas por Bergier e Assine de “megaleques”.

“Os megaleques são sistemas de rios avulsivos, nômades, que mudam constantemente de posição. Em função disso, o Pantanal é uma paisagem mutante e muito suscetível a qualquer interferência antrópica”, sublinha Assine.

“Essas estruturas de megaleques são autossimilares, ou, melhor dizendo, autoafins. São formas parecidas que se repetem em várias escalas. Em nosso estudo, procuramos entender como essas formas se originam e como se repetem. Há vários megaleques dentro da planície. O maior de todos é o do rio Taquari, que tem uma descarga fluvial maior, espraiando mais sedimentos na planície e tomando conta do espaço. Mas rios bem menores, como um chamado de Negro, exibem megaleques parecidos. Então, o Pantanal se formou, ao longo de milhões de anos, no contexto dessa competição entre rios, que tem relação com a quantidade de sedimentos gerada nos planaltos, e que produziu as funcionalidades observadas hoje, com lobos ativos, por onde as águas dos rios se espraiam, e lobos abandonados, por onde as águas já não fluem mais”, explica Bergier (veja a representação gráfica desse sistema complexo na figura abaixo).

O rio Paraguai é o escoadouro final, que capta toda a água que não evapora ou se infiltra no subsolo. Como a porção sul do Pantanal é ainda um pouco mais baixa do que a porção norte, há um gradiente de altitude que faz com que o rio Paraguai flua lentamente para o sul, rumo à bacia do Prata.

“Existe uma enorme captação de águas do entorno, de águas que vêm dos planaltos, e a saída é dificultada por três gargalos que o Paraguai apresenta ao longo de seu curso no Pantanal. Em nosso trabalho, mostramos como esses três gargalos limitam o escoamento da água, retardam o fluxo e provocam inundações na parte sul. O fluxo é tão lento que, na área do Nabileque na porção sul, as maiores inundações ocorrem só quatro a cinco meses depois das épocas de maior precipitação. É uma coisa sui generis”, conta Assine.

Desse modo, o Pantanal funciona como um grande reservatório de água. Se chove muito, a quantidade de água que entra no sistema, na planície, é muito maior do que a água que sai pelos rios. Essa água, então, se acumula, fazendo subir o freático geral da área, que fica inundada. Mas, se ocorre um ano de pouca chuva, a água passa a baixar. Outra coisa, também peculiar, é que o Pantanal está em uma região de déficit hídrico. A evapotranspiração é maior do que a precipitação. Assim, a água se perde também para a atmosfera. Com isso, vai-se criando uma situação em que o freático geral, que é o nível de águas em superfície, se torna cada vez mais baixo. E as lagoas e rios começam a secar.

Esse sobe e desce, que já é complicado por si mesmo, torna-se, evidentemente, mais complicado no contexto da crise climática global, que tende a agudizar todos os eventos extremos, sejam chuvas, sejam secas. E mais complicado ainda quando a ação humana, quer desmatando as áreas de cerrado dos planaltos adjacentes, quer promovendo queimadas e desmatamentos no interior do próprio Pantanal, submete todo o sistema a uma forte pressão.


Mudanças aceleradas

Bergier e Assine trabalharam com a hidrologia para entender como as variações nos ciclos de precipitação dispostas em séries por meio de indicadores da descarga fluvial do rio Paraguai, que é o rio que capta toda a água, condicionam os períodos de menor ou maior seca no Pantanal, possibilitando assim prever que áreas vão sofrer mais.

As áreas mais altas são, evidentemente, aquelas em que o freático desce mais depressa. São as que secam antes e ficam mais sujeitas a queimadas e outras intercorrências. O lobo hoje ativo é aquele que distribui areia na planície. Mas, como já foi dito, existem lobos que foram ativos no passado e hoje estão abandonados pelo rio. Eles também podem abrigar áreas de mato seco, mais suscetíveis a queimar.

“Os lobos distribuem a areia, os sedimentos, e isso vai entupindo o canal até se chegar a um estado crítico, que os pantaneiros chamam de ‘arrombamento das margens’. O rio, então, extravasa e espraia para, depois, se reconstruir outra vez. A cada ciclo plurianual de cheia, o rio se reconstrói, remoldando a paisagem. Por isso, há trechos de vegetação que, um dia, foram matas de galeria e já não são mais. Tentamos observar o Pantanal com esse olhar de complexidade, de estados críticos, nos quais a partir de um determinado limiar o sistema muda abruptamente, para conjecturar como a paisagem pantaneira resultou dessas não linearidades. E como ela poderá evoluir daqui para frente”, comenta Bergier.

O Pantanal é geralmente pensado como um dos seis biomas brasileiros (ao lado da Floresta Amazônica, do Cerrado, da Caatinga, do Pampa e da Floresta Atlântica). Mas a ideia de bioma está associada à vegetação. E não é apenas isso. O Pantanal é, antes de tudo, essa entidade geológica peculiar, que se divide, cria espaços e se transforma o tempo todo. Por exemplo, 30 anos atrás, o Taquari descia para um lugar chamado Porto da Manga. Hoje, sua foz encontra-se dezenas de quilômetros ao norte.

“Essas mudanças são naturais. Na escala de tempo longa, tais eventos são recorrentes. Mas a interferência antrópica faz com que todos os processos sejam acelerados, afetando não apenas o meio ambiente, mas a própria atividade econômica, como a pecuária, que é a principal na região. Isso, concomitantemente à mudança do clima, que é outro fator acelerador”, sublinha Bergier.

Com todos esses aspectos levados em conta, o estudo propõe seis pilares que deveriam orientar um modelo de governança sustentável no Pantanal. Em primeiro lugar, considerar que as formas de relevo funcionais autoafins estão, em última análise, associadas a tipos predominantes de serviços ecossistêmicos. Em segundo, que essas formas evoluem ao longo do tempo e que mudanças ambientais sutis podem alterar substancialmente a natureza, a qualidade e a quantidade dos serviços ecossistêmicos prestados. Em terceiro, que as mudanças e alterações se tornam drásticas em magnitude sempre que a descarga fluvial e o equilíbrio da carga sedimentar se afastam do estado crítico fluvial.

Em quarto lugar, que as mudanças climáticas combinadas com práticas insustentáveis de uso da terra afastam o sistema de estados críticos em escalas temporais mais curtas e em escalas espaciais maiores. Em quinto, que ferramentas de eco-hidrologia combinadas com sistemas integrados lavoura-pecuária-floresta podem mitigar os impactos antrópicos sobre a descarga fluvial e o equilíbrio da carga sedimentar, enquanto contribuem positivamente para o sequestro de carbono atmosférico. Em sexto, por fim, que fatores externos, como as mudanças climáticas, influenciam a formação e evolução das formas de relevo funcionais do Pantanal em larga escala. Outros fatores externos, como a tectônica, também podem desempenhar um papel e merecem investigações futuras.

O estudo em pauta foi apoiado pela FAPESP por meio do projeto “Mudanças paleo-hidrológicas, cronologia de eventos e dinâmica sedimentar no quaternário da Bacia do Pantanal”, conduzido por Assine.

O artigo Functional fluvial landforms of the Pantanal: Hydrologic trends and responses to climate changes pode ser acessado em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0895981122002644?via%3Dihub.


José Tadeu Arantes

Agência FAPESP

https://agencia.fapesp.br/crise-climatica-e-pressao-antropica-estao-levando-o-pantanal-ao-desequilibrio/39672/


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