Paisagem da Baixa Nhecolândia, no Pantanal. A macrorregião abriga a maior planície inundável do planeta (foto: Mario Luis Assine/Unesp)
Com 150 mil quilômetros quadrados, o Pantanal ocupa área equivalente a
1,8% do território nacional, estendendo-se pelos Estados de Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul. Misto de campos abertos, cerrados e florestas, a macrorregião
abriga a maior planície inundável do planeta e compõe, juntamente com a região
do Chaco, situada mais ao sul, um complexo de áreas úmidas com grande
biodiversidade, que fornece serviços ecossistêmicos e culturais para o Brasil,
a Bolívia e o Paraguai.
Mas, assim como a Floresta Amazônica e o Cerrado, o Pantanal vem sendo
fortemente pressionado pela expansão da agropecuária. E, nos últimos anos, foi
palco de um número sem precedentes de incêndios – a maioria deles provocada
pela ação humana, com o objetivo de aumentar as áreas agriculturáveis e as
pastagens (leia mais em: revistapesquisa.fapesp.br/o-pantanal-pede-agua/).
Um novo estudo, que procura dar conta da complexidade dos processos
naturais que ocorrem no Pantanal e que se tornaram mais complexos ainda nos
anos recentes devido à crise climática global e à ação antrópica, foi publicado
no Journal of South American Earth Sciences por dois
veteranos na investigação científica da região: Ivan Bergier e Mario Luis Assine.
Bergier,
pesquisador da Embrapa Pantanal, em Corumbá (MS), estuda a região há 15 anos, e
Assine, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, há
mais de 30 anos.
“Neste novo estudo, dividimos o Pantanal em seções, que chamamos de
compartimentos funcionais, para mostrar como essas áreas se comportam
diferentemente em função da hidrologia: áreas que secam mais depressa, áreas
que só recebem água da chuva, áreas que combinam águas da chuva e dos rios. E
como esse processo natural e recorrente está sendo fortemente afetado agora
pelo aquecimento global e pela ação humana nos entornos e no interior do
próprio Pantanal”, conta Assine à Agência FAPESP.
Conforme o
artigo, a intensidade das chuvas no verão e o número de dias secos no
outono-inverno têm aumentado consistentemente, possibilitando prever uma
ampliação da descarga fluvial e da carga de sedimentos nas estações chuvosas e
a ocorrência de déficits hídricos nas estações secas. “Tal cenário indica
ciclos de seca extremos em todas as formas de relevo funcionais autoafins,
particularmente em lobos [pronuncia-se ‘lóbos’] deposicionais abandonados que
dependem exclusivamente da água da chuva, enquanto extremos de intensidade de
chuva nas cabeceiras dos rios podem amplificar os riscos de avulsões em grande
escala em lobos ativos dos megaleques fluviais”, sintetiza o texto.
Para
entender os significados de expressões como “relevos autoafins”, “lobos abandonados”,
“lobos ativos” e “megaleques fluviais”, é preciso saber um pouco mais sobre as
peculiaridades geomorfológicas do Pantanal.
Existe a
ideia equivocada de que o Pantanal seja uma estrutura homogênea, formada por
pântanos. Mas não é assim. “O Pantanal é uma extensa área inundável, devido a
uma série de características geológicas da paisagem. Trata-se de uma depressão
morfológica, uma bacia sedimentar, sujeita a anos de maior inundação e anos de
menor inundação, associados a períodos de maior ou menor precipitação. Não é
baixa unicamente porque houve erosão. É baixa também devido ao rebaixamento
tectônico, com terremotos que ainda ocorrem na área. Já chamei o Pantanal de
dádiva geológica”, informa Assine.
Essa
história geológica criou uma vasta extensão de terra extremamente plana, com
altitude média de apenas 100 metros. E essa planície é muito suscetível ao que
acontece no entorno, tanto na parte leste, no Planalto Maracaju, associado à
vegetação do Cerrado, quanto na parte norte, no Planalto de Parecis, já na
transição para a Floresta Amazônica. Os rios que descem das terras altas e
trazem sedimentos para a planície são muito diferentes dos usuais. Não são rios
confinados em vales. Mas rios que se abrem, ramificam e distribuem suas águas
por meio de muitos rios menores ou riachos, que formam estruturas descendentes
semelhantes a leques. Por serem vastas, essas estruturas são chamadas por
Bergier e Assine de “megaleques”.
“Os
megaleques são sistemas de rios avulsivos, nômades, que mudam constantemente de
posição. Em função disso, o Pantanal é uma paisagem mutante e muito suscetível
a qualquer interferência antrópica”, sublinha Assine.
“Essas estruturas de megaleques são autossimilares, ou, melhor dizendo,
autoafins. São formas parecidas que se repetem em várias escalas. Em nosso
estudo, procuramos entender como essas formas se originam e como se repetem. Há
vários megaleques dentro da planície. O maior de todos é o do rio Taquari, que
tem uma descarga fluvial maior, espraiando mais sedimentos na planície e tomando
conta do espaço. Mas rios bem menores, como um chamado de Negro, exibem
megaleques parecidos. Então, o Pantanal se formou, ao longo de milhões de anos,
no contexto dessa competição entre rios, que tem relação com a quantidade de
sedimentos gerada nos planaltos, e que produziu as funcionalidades observadas
hoje, com lobos ativos, por onde as águas dos rios se espraiam, e lobos
abandonados, por onde as águas já não fluem mais”, explica Bergier (veja a representação gráfica desse sistema complexo na figura
abaixo).
O rio
Paraguai é o escoadouro final, que capta toda a água que não evapora ou se
infiltra no subsolo. Como a porção sul do Pantanal é ainda um pouco mais baixa
do que a porção norte, há um gradiente de altitude que faz com que o rio
Paraguai flua lentamente para o sul, rumo à bacia do Prata.
“Existe uma enorme captação de águas do entorno, de águas que vêm dos
planaltos, e a saída é dificultada por três gargalos que o Paraguai apresenta
ao longo de seu curso no Pantanal. Em nosso trabalho, mostramos como esses três
gargalos limitam o escoamento da água, retardam o fluxo e provocam inundações
na parte sul. O fluxo é tão lento que, na área do Nabileque na porção sul, as
maiores inundações ocorrem só quatro a cinco meses depois das épocas de maior precipitação.
É uma coisa sui generis”, conta Assine.
Desse
modo, o Pantanal funciona como um grande reservatório de água. Se chove muito,
a quantidade de água que entra no sistema, na planície, é muito maior do que a
água que sai pelos rios. Essa água, então, se acumula, fazendo subir o freático
geral da área, que fica inundada. Mas, se ocorre um ano de pouca chuva, a água
passa a baixar. Outra coisa, também peculiar, é que o Pantanal está em uma
região de déficit hídrico. A evapotranspiração é maior do que a precipitação.
Assim, a água se perde também para a atmosfera. Com isso, vai-se criando uma
situação em que o freático geral, que é o nível de águas em superfície, se
torna cada vez mais baixo. E as lagoas e rios começam a secar.
Esse sobe
e desce, que já é complicado por si mesmo, torna-se, evidentemente, mais
complicado no contexto da crise climática global, que tende a agudizar todos os
eventos extremos, sejam chuvas, sejam secas. E mais complicado ainda quando a
ação humana, quer desmatando as áreas de cerrado dos planaltos adjacentes, quer
promovendo queimadas e desmatamentos no interior do próprio Pantanal,
submete todo o sistema a uma forte pressão.
Mudanças
aceleradas
Bergier e
Assine trabalharam com a hidrologia para entender como as variações nos ciclos
de precipitação dispostas em séries por meio de indicadores da descarga fluvial
do rio Paraguai, que é o rio que capta toda a água, condicionam os períodos de
menor ou maior seca no Pantanal, possibilitando assim prever que áreas vão
sofrer mais.
As áreas
mais altas são, evidentemente, aquelas em que o freático desce mais depressa.
São as que secam antes e ficam mais sujeitas a queimadas e outras
intercorrências. O lobo hoje ativo é aquele que distribui areia na planície.
Mas, como já foi dito, existem lobos que foram ativos no passado e hoje estão
abandonados pelo rio. Eles também podem abrigar áreas de mato seco, mais
suscetíveis a queimar.
“Os lobos
distribuem a areia, os sedimentos, e isso vai entupindo o canal até se chegar a
um estado crítico, que os pantaneiros chamam de ‘arrombamento das margens’. O
rio, então, extravasa e espraia para, depois, se reconstruir outra vez. A cada
ciclo plurianual de cheia, o rio se reconstrói, remoldando a paisagem. Por
isso, há trechos de vegetação que, um dia, foram matas de galeria e já não são
mais. Tentamos observar o Pantanal com esse olhar de complexidade, de estados
críticos, nos quais a partir de um determinado limiar o sistema muda
abruptamente, para conjecturar como a paisagem pantaneira resultou dessas não
linearidades. E como ela poderá evoluir daqui para frente”, comenta Bergier.
O Pantanal
é geralmente pensado como um dos seis biomas brasileiros (ao lado da Floresta
Amazônica, do Cerrado, da Caatinga, do Pampa e da Floresta Atlântica). Mas a
ideia de bioma está associada à vegetação. E não é apenas isso. O Pantanal é,
antes de tudo, essa entidade geológica peculiar, que se divide, cria espaços e
se transforma o tempo todo. Por exemplo, 30 anos atrás, o Taquari descia para
um lugar chamado Porto da Manga. Hoje, sua foz encontra-se dezenas de
quilômetros ao norte.
“Essas
mudanças são naturais. Na escala de tempo longa, tais eventos são recorrentes.
Mas a interferência antrópica faz com que todos os processos sejam acelerados,
afetando não apenas o meio ambiente, mas a própria atividade econômica, como a
pecuária, que é a principal na região. Isso, concomitantemente à mudança do
clima, que é outro fator acelerador”, sublinha Bergier.
Com todos
esses aspectos levados em conta, o estudo propõe seis pilares que deveriam
orientar um modelo de governança sustentável no Pantanal. Em primeiro lugar,
considerar que as formas de relevo funcionais autoafins estão, em última
análise, associadas a tipos predominantes de serviços ecossistêmicos. Em
segundo, que essas formas evoluem ao longo do tempo e que mudanças ambientais
sutis podem alterar substancialmente a natureza, a qualidade e a quantidade dos
serviços ecossistêmicos prestados. Em terceiro, que as mudanças e alterações se
tornam drásticas em magnitude sempre que a descarga fluvial e o equilíbrio da
carga sedimentar se afastam do estado crítico fluvial.
Em quarto
lugar, que as mudanças climáticas combinadas com práticas insustentáveis de uso
da terra afastam o sistema de estados críticos em escalas temporais mais curtas
e em escalas espaciais maiores. Em quinto, que ferramentas de eco-hidrologia
combinadas com sistemas integrados lavoura-pecuária-floresta podem mitigar os
impactos antrópicos sobre a descarga fluvial e o equilíbrio da carga
sedimentar, enquanto contribuem positivamente para o sequestro de carbono
atmosférico. Em sexto, por fim, que fatores externos, como as mudanças
climáticas, influenciam a formação e evolução das formas de relevo funcionais
do Pantanal em larga escala. Outros fatores externos, como a tectônica, também
podem desempenhar um papel e merecem investigações futuras.
O estudo em pauta foi apoiado pela FAPESP por meio do projeto “Mudanças paleo-hidrológicas,
cronologia de eventos e dinâmica sedimentar no quaternário da Bacia do Pantanal”,
conduzido por Assine.
O artigo Functional fluvial landforms of the Pantanal:
Hydrologic trends and responses to climate changes pode ser
acessado em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0895981122002644?via%3Dihub.
José Tadeu Arantes
Agência
FAPESP
https://agencia.fapesp.br/crise-climatica-e-pressao-antropica-estao-levando-o-pantanal-ao-desequilibrio/39672/
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