Ausência de ritos de passagem atrapalha a sensação de que a vida segue: marcos temporais são importantes para o emocional e para a economia do país
No Brasil, é comum ouvir que o ano só começa depois
do Carnaval. As férias de verão acabam, as aulas recomeçam, as atividades
entram no ritmo, a economia acelera. Desta vez, com a folia suspensa por causa
da pandemia, a dúvida é: quando, afinal, 2021 vai engrenar? Por que muita gente
tem a sensação de que 2020 não terminou?
Para o mestre em psicologia Guilherme Alcântara
Ramos, professor do UNICURITIBA, membro do Núcleo de Atendimento
Psicopedagógico da instituição e coordenador da Comissão de Psicologia
Organizacional e do Trabalho do Conselho Regional de Psicologia, o cancelamento
do Carnaval – e também do Réveillon - em função da pandemia, provocou a
sensação de que 2020 foi um “ano sem fim”.
“Esses eventos são ritos culturais consolidados no
Brasil como fases de transição e têm um efeito psicológico importante. Mesmo
quem voltou ao trabalho em janeiro tem o Carnaval como um marco temporal. Esses
momentos demarcam uma nova fase que nos prepara para enfrentar as demandas
futuras e, portanto, a não realização destas festas torna seu efeito simbólico
mais frágil, provocando essa sensação de que algo está faltando e de que não
estamos adequadamente preparados para o que está por vir”, explica.
Os impactos não são apenas psicológicos. A falta
destes “marcadores” a que se refere o professor Guilherme tem reflexos também
na economia do país. “É muito difícil pensar no começo de um novo ano, uma vez
que a pandemia ainda não acabou. Infelizmente, os foliões ficaram sem Carnaval
e a economia, sem pós-Carnaval”, avalia a economista Patrícia Tendolini
Oliveira, mestre em Administração e coordenadora do curso de Relações
Internacionais do UNICURITIBA.
A retomada, continua a professora, está na
expectativa de medidas como o novo auxílio emergencial (ainda que em uma versão
diferente da adotada em 2020, com três parcelas de R$ 200 e menor abrangência),
a antecipação do 13º do INSS, a reativação do programa de manutenção do emprego
e a flexibilização das exigências para a concessão de crédito. “Essas
iniciativas podem garantir uma certa retomada e uma melhora no ambiente
econômico.”
Pandemia no
centro das atenções
Mesmo que 2021 já tenha chegado, a tendência é que
a vida continue girando em torno de um velho assunto: a pandemia. “Há
estimativas de que apenas em setembro o Brasil alcance a chamada imunidade de
rebanho, com boa parte da população vacinada, e só então a vida comece a voltar
ao normal. Ainda assim há a possibilidade de novas cepas do vírus não serem
combatidas pelas atuais vacinas, sob o risco de o problema se arrastar por mais
tempo”, avalia a economista.
O psicólogo Guilherme Ramos concorda que o tema
dominará a pauta nos próximos meses, impactando de forma significativa os
processos de trabalho, emprego, renda, economia e as relações interpessoais.
Tudo agravado pelo posicionamento divergente dos agentes públicos na condução
do assunto.
“A divergência na conduta e nas comunicações
confunde a sociedade e não cria um padrão de ações consistente a ser seguido
pela população, aumentando a insegurança, os questionamentos, os conflitos, o
esgotamento mental, o cansaço e essa sensação de que o ano não termina”,
avalia.
Segundo Patrícia Tendolini, os reflexos são diretos
na economia e embora a expectativa de crescimento gire em torno de 3,5% em
2021, o índice sequer recupera a queda de 2020, projetada para 4,3%.
“As medidas em estudo pelo governo federal podem
representar uma leve melhora para a economia, mas a geração de emprego e renda
no longo prazo vai muito além dessas ações pontuais e depende de fatores
estruturais como produtividade da mão de obra, ambiente de negócios e segurança
jurídica”.
Responsável por mais de 60% do PIB do Brasil, o
setor de serviços pode contribuir para uma retomada econômica mais rápida,
avalia a professora do UNICURITIBA. “É importante que o comércio, restaurantes,
bares, salões de beleza e serviços de transporte - atividades presentes em
grandes e pequenas cidades - consigam retomar os negócios. O problema é que
essas atividades são as que mais sofrem com o isolamento social e, portanto,
são as que mais precisam da população imunizada contra o coronavírus.”
Vacinação em massa
Na avaliação da mestre em Administração, Patrícia
Tendolini, a sensação de normalidade tão desejada pelos brasileiros e a
“confirmação” de que o ano, de fato, começou, vão depender da imunidade de
rebanho. “A vacinação em massa é fundamental. As estabilidades econômica e
política estão diretamente relacionadas e a confiança de empresários e
consumidores, tanto na economia quanto na política, será essencial para pensar
em um futuro promissor para o país.”
Enquanto a imunização da população não acontece e
os grandes eventos - os marcos temporais que ajudam na programação mental - não
podem ocorrer em função da pandemia, o psicólogo Guilherme Alcântara Ramos tem
dicas. “Podemos fazer rituais particulares que vão criar essa condição
psicológica, essa predisposição para lidarmos com o novo, com as novas
demandas, os novos projetos. Podemos estabelecer um marco próprio e que cause o
mesmo efeito, não precisa ser exatamente uma festa de Réveillon ou o Carnaval”,
ensina.
Importância
dos ritos de passagem
O professor do curso de Psicologia do UNICURITIBA
explica que os rituais de passagem são construções sociais e culturais
importantes do ponto de vista emocional e psicológico. Ajudam, inclusive, a delimitar
as formas como as pessoas são vistas socialmente.
É assim no aniversário de 18 anos, quando o
indivíduo passa a ter novos direitos e deveres como cidadão; na formatura,
quando deixa de ser estudante e se torna um profissional; no casamento, quando
assume um novo status perante a sociedade. Mas não são apenas os grandes
eventos que são importantes.
“Os rituais existem para aumentar a nossa
predisposição diante de uma nova demanda. Em menor escala, são os ritos
diários, como, por exemplo, tirar o pijama e se arrumar para o trabalho, mesmo
que seja em home office. Isso nos faz sentir preparados para executar melhor as
funções”, orienta.
É neste sentido que o especialista fala sobre a
importância de cada pessoa criar seus próprios mecanismos para virar a chave e
recomeçar outro ciclo. “Se estamos impedidos pela pandemia de participar dos
marcos temporais tradicionais, com aglomeração, o jeito é ter rituais
particulares e específicos que provoquem as mesmas sensações e nos preparem
para encarar o novo ano. Não precisamos depender do Carnaval para isso”.
Covid-19 e
a sobrecarga emocional
Não bastasse a confusão provocada pela ausência dos
tradicionais rituais que garantem o início de novas fases na vida das pessoas,
a pandemia também restringiu as opções de lazer e diversão. Na avaliação do
membro do Núcleo de Atendimento Psicopedagógico do UNICURITIBA, professor
Guilherme Alcântara Ramos, esse é outro complicador emocional.
“Além de termos que lidar com um inimigo invisível,
o vírus da Covid-19 – o que torna o desafio do autocuidado e do cuidado com os
outros ainda maior -, o trabalho invadiu as residências e as condições de lazer
e diversão foram reduzidas. Estamos mais cansados e sobrecarregados. Precisamos
criar condições prazerosas, seguras e lúdicas para lidar com as alterações que
a pandemia impôs às nossas vidas”, comenta.
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