O
ensino domiciliar não é vantajoso por várias razões.
A
primeira é que o ambiente familiar já é um espaço educativo onde ocorrem (ou
pelo menos deveriam ocorrer) importantes aprendizagens de cunho cultural, como
valores, costumes, tradições, ensinamentos religiosos (ou a negação desse
ensinamento), próprios de cada família. Além disso, é nesse ambiente que também
acontecem os aprendizados de caráter afetivo: a maneira como lidamos com as
emoções ou como as relações de afeto são construídas.
Sendo
assim, a criança tem o direito de ter contato com outro tipo de educação, como
aponta Libâneo: a formal (acadêmica, escolar). Por meio dela, terá a
possibilidade de conhecer outras culturas, outros valores, outras tradições, a
partir da experiência e não apenas pelos livros ou acesso digital. Nesse
percurso, vai encontrar pessoas com as quais não têm a mesma relação afetiva e
isso é fundamental para aprender a lidar com as diferenças e para seu
crescimento emocional.
Se,
por exemplo, a criança é superprotegida ou mimada e lhe faltam limites, o
ambiente escolar - onde é preciso seguir regras, respeitar o espaço coletivo e,
principalmente, respeitar ideias diferentes às suas - é fundamental para o seu
crescimento saudável. Privar as crianças do acesso ao ambiente escolar é querer
formar adultos com carência de aprendizagem mediada. A pedagogia da mediação é
um tema tratado por Feurstein e diz respeito ao professor mediador, que é
capaz, inclusive, de auxiliar os alunos a superarem essa carência de mediação,
muitas vezes, fruto de lacunas da aprendizagem familiar.
A
segunda razão e, para mim, a mais importante, é que, ao legitimar o ensino
domiciliar como uma opção para todas as famílias brasileiras, afirma-se que não
é preciso formação acadêmica para a profissão docente. Isso é muito grave. É
como considerar que posso exercer a Medicina, o Direito, a Engenharia, a
Odontologia sem nenhum tipo de formação específica para isso. Legitimar a
educação domiciliar é retroceder historicamente ao pensamento grego antigo, que
acreditava ser a didática a arte de ensinar e que, para isso, bastava ter
nascido com esse dom.
Para
a Didática moderna, pós-Comenius, o professor não nasce professor, torna-se
professor por meio de formação acadêmica e profissional para o magistério (em
cursos de licenciatura, especialização, mestrado, doutorado) e também a partir
de outros saberes, como os da prática, os pessoais, os provenientes dos
materiais didáticos etc., conforme constata Tardif. Assim, como os pais que não
possuem formação específica para a licenciatura poderão elaborar planos de
ensino, traçar objetivos, escolher métodos e avaliar? Sem essa formação, eles
conhecerão com profundidade as teorias sobre desenvolvimento infantil,
aprendizagem e mediação? Além disso, como garantir a aprendizagem que muitas
vezes se dá entre as próprias crianças no ambiente escolar, nas trocas entre
pares? E ainda, é possível o domínio pelos pais dos conteúdos específicos de
cada um dos componentes curriculares, como Língua Portuguesa, Matemática,
Geografia, História, Química, Física, Biologia? Os defensores da educação
domiciliar poderiam argumentar: “mas atualmente, a informação está à disposição
para todos na web”.
Sim, isso é verdade e esse “mar de informações” pode e deve ser usado em casa,
por meio de pesquisas e conversa com os pais, o que, inclusive, pode ser levado
à discussão em sala de aula para partilhar o conhecimento com os demais
colegas.
O
acesso à informação não garante que o ensino domiciliar será melhor ou mais
adequado do que o escolar. Aliás, o que vemos são crianças usando celulares, tablets e computadores
em excesso em suas casas, muitas vezes, sem nenhum tipo de monitoramento dos
pais. Essas crianças, ao menos na escola, têm a oportunidade de se
relacionarem, conversarem, brincarem, porque, em casa, ficam horas atrás de uma
tela e mal conversam com os pais.
A
terceira razão, não menos importante, deve-se ao fato de a educação domiciliar
não ser um projeto que atenda às necessidades reais dos problemas da educação
brasileira. Dados do Censo 2018 apontam mais de 39 milhões de matrículas em
escolas públicas de Educação Básica, enquanto na rede privada são em torno de 9
milhões de estudantes. Somente por esses dados é possível afirmar que as
instituições públicas atendem à maior parte de crianças e adolescentes em idade
escolar. São, portanto, filhos e filhas de trabalhadores, que dependem da
escola gratuita para terem acesso à educação formal. Dessa forma, o projeto de
educação domiciliar é excludente e privilegia pequena parte da população. O
Projeto de Lei que busca regulamentar o ensino domiciliar elenca como uma das
justificativas a essa modalidade o fato de os pais desejarem preservar seus
filhos da violência, bullying e
drogas, problemas existentes no ambiente escolar. Fica a questão: seria essa
uma forma de o governo se eximir da responsabilidade desses problemas que
assolam as instituições de ensino do país?
A
quarta razão se constitui em um grande questionamento: o governo brasileiro
está preparado para regulamentar o ensino domiciliar, visto que vem
demonstrando fragilidades no que diz respeito a projetos efetivos que visem à
melhoria da qualidade de ensino, principalmente na Educação Básica?
É
preciso gastar tempo, energia e recursos com o que é urgente: valorização da
profissão docente, por meio de investimentos à formação inicial e continuada e
aumento da qualidade de condições de trabalho do professor; suporte físico às
escolas; salas de aula equipadas e com menos alunos por turma; bibliotecas e
laboratórios amplos; implementação de projetos inovadores, que ultrapassem de
fato as salas de aula tradicionais, com alunos enfileirados e sentados por
quatro horas; e espaços de aprendizagem colaborativos, que incentivem pesquisa,
projetos e grupos de estudo.
Luciana
Carolina Santos Zatera - licenciada em Letras e em Pedagogia. Mestra em
Educação. Professora na Escola Superior de Educação do Centro Universitário
Internacional Uninter.
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