Estava dando uma aula online, para um grupo de Mentoria de uma boa amiga, quando uma aluna me perguntou sobre a Terapia de Constelações Familiares, esperando de mim algum tipo de ataque ou condenação, tão frequentes no “establishment” tanto da Psicologia quanto da Psiquiatria. Respondi que acredito mais em terapeutas do que em terapias, o que não foi a resposta esperada. Já recebi relatos de experiências intensas e curativas nessa modalidade terapêutica, assim como tive que socorrer clientes que ficaram mexidos e mesmo desestruturados, após vivências em locais inadequados, como uma empresa ou um workshop de final de semana, na mesma terapia. Essas duas experiências foram bastante negativas e mesmo perigosas para a integridade psíquica das pessoas envolvidas. Tem muita gente formada em cursos de final de semana cutucando nos traumas e nas psiques das pessoas. Cuidado. Mas, a princípio, não vou cair na atitude farisaica de criticar de maneira generalizada esse trabalho, até porque conheço o pensamento de seu criador, o psicoterapeuta alemão Bert Hellinger.
O que muita gente não conhece é o tipo de
psicoterapia que, muito provavelmente, influenciou Bert Hellinger: a Gestalt
Terapia. Mas, deve-se estar perguntando o leitor ou a leitora que abriu,
acidentalmente ou não, esse artigo: o que faz esse texto após o título
acima, de um filme recém lançado e provável candidato brasileiro ao Oscar –
“Ainda Estamos Aqui”, baseados na obra de Marcelo Rubens Paiva? Já vou
explicar.
Gestalt quer dizer “forma completa”, ou “figura
completa”. Em terapia, é como o fechamento de uma ferida que ficou aberta. Vou
dar um exemplo pessoal e canino; quem já leu essa coluna deve saber que eu sou
um inveterado cachorreiro. Uma doguinha querida era Chiara, uma boxer meio
pilhada que teve infelizmente aos sete anos um Câncer comum na raça, o
Mastocitoma. Quando seu sofrimento ficou intolerável, levei a Chiara para
encerrar seu sofrimento. Ela tomou uma injeção pacificamente enquanto eu
cantava uma música no seu ouvido. Fiquei reconfortado por ter estado lá com
ela. E vida que segue. Alguns anos depois, num curso de Processamento de
Memórias, a cena me voltou como um flash e eu pude, finalmente, chorar a
tristeza de ter passado por aquilo. Pode-se dizer que a Gestalt, que estava
aberta, se fechou: eu levei o luto no peito e pude, anos depois, encerrar
aquela vivência. Essa é a base da Gestalt e das Constelações: chorar perdas,
pedir desculpas, entender histórias pessoais e familiares. Realizar fechamentos
de feridas.
“Ainda Estamos Aqui” é um filme sobre feridas
abertas numa família de classe média, no início dos anos setenta. O ex deputado
Rubens Paiva é levado de sua casa, sem intimação ou mandato judicial, para
interrogatório por agentes à paisana. Foi o começo de uma via crucis de
desinformação, angústia e perda da família de Eunice Paiva (trabalho
fantástico, inesquecível, de Fernanda Torres), com a violência impressionante
de um pai de família sendo abduzido de sua casa por suspeita de colaboração com
a luta armada. E ele realmente colaborava e protegia amigos perseguidos pela
Ditadura Militar. Mas nunca participou da luta armada.
Vou fazer um micro spoiler, que eu espero que
incentive as pessoas a verem esse filme lindo de Walther Salles: algumas
décadas depois do desaparecimento de seu pai, a família se reúne para recuperar
fotos e lembranças para Marcelo, tetraplégico desde a adolescência por um
acidente de mergulho, escrever o livro que deu origem ao filme. No final do
almoço, Marcelo conversa com a irmã, sobre quando sepultaram internamente seu
pai, realizando que não voltaria: Marcelo quando viu sua mãe doar as roupas de
seu pai, sua irmã quando eles saíram meio fugidos do Rio de Janeiro, para
reconstruir a vida em São Paulo. Cada um com seu tempo.
O Luto sem fechamento talvez seja dos mais
dolorosos de todos. O parente desaparecido. O pai que abandona a família e some
no mundo. O crime que oculta a verdade sobre uma morte. Por mais que,
racionalmente, as pessoas envolvidas saibam que a pessoa não vai voltar, tem um
tipo de Memória que sempre vai deixar uma esperança de que ela vai retornar.
Cada toque no telefone pode ser quem eu estou esperando. A Gestalt não se
fecha. O Luto fica sem fechamento, muitas vezes por toda a vida. Tem um filme
de um cachorro que passou o resto de sua vida indo para uma estação de trem
esperar seu dono, que tinha morrido. Esse é o aspecto mais doído do luto sem
fechamento: é a espera eterna.
“Ainda Estamos Aqui” é a celebração de uma família
que, através da força inacreditável da mãe e do amor que unia a todos, resistiu
à tragédia, à violência e à falta de sentido para buscar justiça e fechamento
das feridas. Na sala lotada que eu assisti o filme, aplaudimos o mesmo por
alguns minutos. Com meus olhos embaçados de lágrimas.
Marco Antonio Spinelli -médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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