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sábado, 7 de outubro de 2023

Custo de transação na vida e na morte

É uma expressão da Economia, mas que, na prática, define muitos aspectos da

vida cotidiana: custo de transação é o dispêndio efetivado para realizar um
negócio além do custo do negócio em si. Exemplo: saio para apanhar meus
óculos novos. Se não encontro estacionamento, meus óculos já começam a
encarecer; se não estão prontos, a viagem perdida é custo acrescido; mais um
“imprevisto” e o meu negócio fica caríssimo, ainda que o desembolso efetivo
junto à ótica se mantenha igual.

Hábitos habituam. Nossos maus hábitos nos habituaram mal. Anuímos
acriticamente com modos desaforados que, ao cabo, ofendem moralmente e
prejudicam materialmente a nós mesmo\as. Confira-se: somando-se a ocasião
em si que desperdicei e as oportunidades perdidas enquanto o tempo corria e o
razoável se extrapolará. Então, com o razoável extrapolado, feitas as contas
que não se fazem, estressei-me e gastei o que não estava previsto e não era
necessário gastar.

Toda aquisição de mercadoria supõe o custo de sua produção mais o lucro do
fabricante, o do intermediário e o do comerciante. É o preço do negócio. O que
se acrescenta em gasto para realizá-lo é custo de transação. Nossa vida entra
nisso quando ao passeio se soma o pneu que se estragará nos buracos da
estrada, perco tempo em espera nos serviços públicos, o médico atrasa além
do moderado, alguém chega bêbado ao trabalho, nos passam gripe, e o que
mais os hábitos possam listar.


Os países nórdicos têm o menor custo de transação. O transporte público
funciona, as coisas acontecem no prazo, a confiabilidade social é alta, os
calotes privados são poucos. Nossos custos são altos: falta segurança, tudo
atrasa, sobra arrogância. Há nepotismo, burocracia corrupta, impunidade, além
dos et cetera que cada qual pode acrescentar a esta triste relação. Nossos
negócios embutem gastos dispensáveis, que pagamos conformados, em clima
de atípica normalidade.

Conta-me o taxista, salientando que nunca imaginara passar pelo que passou.
Acudiu – sentiu-se na obrigação – aos apelos da moça que se contorcia de dor.
Ligeiro, tocou-se a buscar socorro. No trânsito, na pressa, nem notou que a
passageira parara de gemer. Na emergência do hospital, no carro mesmo,
apalparam a garota, cortaram-lhe a blusa, expuseram-lhe os seios, declaram-
na morta. Indignou-se com a exposição desnecessária, mas sobre isso não
quis pedir explicação.


Surpreso, lamentou a circunstância. E agora? Bem, da parte dele fizera o
possível, não podia ajudar em mais nada. Queria deixar a moça, rodara toda a
noite, precisava dormir. Debalde. Então, o princípio da via crucis: recusaram o
corpo. Crua explicação: não era mais uma moça, era um cadáver; devia ir à
Delegacia mais próxima. Foi. Longa espera. Não era ali. O caso era da região onde a apanhara, a competência era de lá. Indignado, porém resignado,
buscou o local.

Pelo caminho, os seios da moça. Descobriram-nos sem nenhum pudor. Se
fosse sua filha, não a queria assim. Mas parar o carro e arrumar-lhe a roupa, e
de uma morta, poderia dar confusão. Tocou como estava. Chegou, explicou,
esperou. Atendido, enfim. Era ali, mas havia que registrar a ocorrência. Pouca
demora, registrou. Mais um pouco e já viria o IML. Aguardou. Nada. Reclamou:
deixava a moça, o IML viria buscá-la; tinha de dormir. Não podia. Alegaram que
delegacia não é necrotério.

Ou conformado, ou por muito cansaço, foi para o carro. Sentou-se ao lado da
moça. Era o jeito. Mirou-lhe o rosto pálido. Enterneceu-se. Acariciou-lhe o
cabelo. Sentiu tristeza com o abandono em que ela se encontrava. Seria filha
de quem? Apeou, foi à porta dela, abria-a, reclinou-lhe o espaldar do banco.
Ajeitou-lhe melhor o corpo. Havia de lhe dar algum conforto. Contornou o carro.
Parou. Pensou um pouco. Que susto! Tomou a situação em conta: e agora, a
quem se iria avisar!?

Depois via, precisava cochilar. Acordou, pôs-se a refletir: havia uma bolsa; na
bolsa, o telefone de onde a moça iria trabalhar. Lá, sabiam mais. Mas não a
viriam buscar. Na Delegacia, queriam que esperasse; não esperava. Deixava o
carro, se fosse o caso. Bastava de esperar. Sopraram uma sugestão: levasse a
moça ao IML, ficava a quatro quadras. Merda!, podiam já ter dito. Levou.
Receberiam, mas tinha que aguardar. Ia trocar o plantão. E daí? Daí que
misturar plantão podia complicar.

Impacientou-se. Sopesou: se complicasse, complicava mais. Sorriu, sentou-se
com a moça, com ela esperou. Uma corrida de vinte horas. Chamaram-no.
Tomou o corpo e deitou-o em uma maca. Já saía, mas voltou-se. Pediu clipes e
fechou-lhe a blusa. Arrematou a história: Veja só este País, tudo custa demais,
até cumprir obrigação ou fazer favor. E o desrespeito. Cortaram a roupa da
moça; até hoje não entendi a razão. É o custo Brasil de transação da vida. É o
custo da própria morte.

 

Léo Rosa de Andrade
Doutor em Direito pela UFSC
Psicanalista e Jornalista

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