Pesquisadores da USP acompanharam 701 pacientes internados por complicações da doença no Hospital das Clínicas. Em avaliações feitas seis meses após a alta hospitalar, observou-se que os indivíduos que apresentavam mais sequelas sensoriais também tinham pior desempenho nos testes cognitivos, principalmente os de memorização (imagem: Raman Oza/Pixabay)
Estudos feitos antes da pandemia de COVID-19 apontaram
a perda de olfato como um possível sinal precoce da doença de Alzheimer. Há, na
literatura científica, evidências de que essa disfunção sensorial pode se
manifestar anos antes dos primeiros sintomas cognitivos aparecerem, o que
sugere haver uma conexão entre a região cerebral responsável pela memória e a
que registra e interpreta os estímulos olfativos.
Essa hipótese acaba de ganhar força
com um trabalho publicado por
pesquisadores brasileiros no European Archives of Psychiatry
and Clinical Neuroscience. O grupo acompanhou 701 pacientes
internados com COVID-19 moderada ou grave no Hospital das Clínicas da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), entre março e agosto de
2020. Em avaliações feitas seis meses após a alta hospitalar, observaram que os
indivíduos que apresentavam mais sequelas sensoriais pós-COVID (redução ou
modificação do olfato e/ou do paladar) tinham pior desempenho nos testes
cognitivos, particularmente nos de memória. E esse resultado era independente
de quão grave havia sido o quadro na fase aguda da doença.
“O olfato é uma importante conexão
com o mundo externo e está muito relacionado com experiências passadas. O cheiro
de bolo, por exemplo, pode nos trazer a lembrança da avó. Em termos de conexão
cerebral, tem uma interação com a memória muito mais robusta do que a visão e a
audição”, afirma o médico otorrinolaringologista Fábio Pinna,
um dos autores do artigo.
Dos 701
voluntários incluídos na pesquisa, 52,4% eram do sexo masculino. A média de
idade foi de 55,3 anos e o tempo médio de internação de 17,6 dias. Pouco mais
da metade da amostra (56,4%) precisou ser internada em Unidade de Terapia
Intensiva (UTI) por complicações da COVID-19, sendo que 37,4% dos voluntários
foram intubados.
Nas
análises conduzidas seis meses após deixarem o hospital, o funcionamento do
olfato e do paladar foi mensurado por meio de questionários previamente
padronizados para estudos do tipo, que também avaliam aspectos relacionados à
qualidade de vida.
A redução
moderada ou severa do paladar foi a sequela sensorial mais comum (20%), seguida
de redução de olfato moderada ou severa (18%), redução concomitante de olfato e
paladar moderada ou severa (11%) e parosmia (9%) – termo usado para descrever
alterações na percepção olfativa, por exemplo, quando um odor antes considerado
agradável passa a ser percebido como ruim. Doze voluntários apresentaram
alucinações olfativas (sentem cheiros que outras pessoas não sentem) e nove
pessoas relataram alucinações gustativas (sentem o gosto de um alimento sem
tê-lo provado). Nos dois casos, a maioria afirmou que essas alucinações só
apareceram após a infecção pelo novo coronavírus. Em relação ao estado geral de
saúde, 10,1% dos participantes descreveram como “ruim ou muito ruim”, 38,5%
como “médio” e 51,4% como “bom ou muito bom”.
Também por
meio de questionários padronizados, os cientistas verificaram a presença de
sintomas psiquiátricos, como ansiedade e depressão. E testes neuropsicológicos
foram aplicados para mensurar as chamadas funções cognitivas, entre elas
memória, atenção e velocidade de raciocínio.
Ao final,
todos os resultados foram analisados por métodos estatísticos com o objetivo de
descobrir se havia uma correlação entre sintomas neuropsiquiátricos e
disfunções sensoriais. Observou-se que os voluntários que sofriam de
parosmia tinham maior percepção de que sua memória estava ruim. Aqueles que
tiveram diminuição moderada ou grave do paladar saíram-se significativamente
pior em uma tarefa que consistia em memorizar uma lista de palavras – usada
para avaliar a chamada memória episódica (de curto prazo, muito relacionada com
a atenção). Os voluntários que tiveram perda concomitante de paladar e olfato
moderada ou grave também demonstraram comprometimento significativo na memória
episódica.
“Não encontramos nenhum sintoma
psiquiátrico [ansiedade ou depressão, por exemplo] associado à perda de
olfato e paladar. Mas, como esperado, observamos que a atenção e a memória
episódica estavam mais prejudicadas nos pacientes com maior alteração
quimiossensorial”, comenta Rodolfo Damiano, doutorando na FM-USP com bolsa da FAPESP e
primeiro autor do artigo. “Esse achado corrobora a hipótese de que a COVID-19
tem, de fato, um impacto na cognição e seus prejuízos não são apenas
decorrentes de questões psicossociais ou ambientais”, avalia.
A origem do dano
No caso da
doença de Alzheimer, acredita-se que a perda de olfato possa ser uma das
primeiras consequências do processo degenerativo que leva à perda progressiva
de neurônios. Já a perda de olfato associada à COVID-19, segundo Pinna, é
decorrente da inflamação desencadeada pelo SARS-CoV-2 na mucosa olfatória.
“Isso leva a uma diminuição do muco olfatório. Não temos visto uma lesão direta
nos neurônios olfatórios. Eles acabam se degenerando, mas parece ser uma
consequência secundária da perda do muco olfatório. A mucosa sofre um processo
de atrofia e pode perder essa capacidade de captar odores”, explica o médico.
Como explica o psicogeriatra Orestes Forlenza,
professor do Departamento de Psiquiatria da FM-USP e um dos coordenadores do
estudo, as perdas cognitivas observadas na doença de Alzheimer e nas síndromes
pós-COVID decorrem de processos patogênicos distintos, mas os dois processos
podem se sobrepor. “Particularmente em indivíduos idosos, que já apresentam
sintomas cognitivos primários e venham a contrair a infecção. Há indícios preliminares
de que essa sobreposição de fatores patogênicos possa acelerar ou agravar a
progressão das perdas cognitivas”, afirma.
Ainda não
se sabe, contudo, o mecanismo exato pelo qual a infecção pelo coronavírus leva
ao dano cognitivo. Para tentar identificar quais vias cerebrais estão alteradas
na fase aguda da doença, o grupo da USP pretende aplicar novos testes em
pacientes que apresentam perda de olfato e paladar. A ideia é que os
voluntários façam as tarefas enquanto são submetidos a um exame de ressonância
magnética de 7 tesla, que tem imagem de altíssima resolução (os equipamentos
comuns têm apenas 3 tesla).
“Nossa
hipótese é a de que o vírus provoca uma neuroinflamação, que leva ao prejuízo
na cognição. Se os danos são permanentes ainda não sabemos. Continuamos a
acompanhar os pacientes para descobrir se há melhora ou não”, conta Damiano.
O grupo
também pretende investigar se a relação entre perda sensorial e cognitiva
também ocorre em pessoas que contraíram a COVID-19 após a vacinação. “Estamos
fazendo um estudo semelhante a este agora divulgado, mas considerando se o
participante foi ou não vacinado e quantas doses tomou antes de se infectar. O
objetivo é descobrir se a vacina oferece proteção contra complicações
neuropsiquiátricas. E também se um tipo de imunizante protege mais que outro, o
que o tornaria mais indicado para pessoas com doenças psiquiátricas”, conta o
doutorando.
Mais atenção ao olfato
Segundo os
autores, uma das mensagens importantes do artigo é que disfunções olfativas
deveriam ganhar mais atenção de profissionais de saúde e das pessoas em geral.
“Quando um
idoso começa a perder o olfato, pode ser um indício precoce de demência. É
preciso levá-lo ao médico para uma avaliação. Já as pessoas que tiveram perda
olfativa moderada ou grave após a COVID-19 devem ficar atentas nos próximos
anos a alterações de memória, assim como seus familiares”, opina Damiano.
Pinna
espera que os resultados estimulem médicos e pacientes com disfunção olfatória
a investir no tratamento. “Antes da COVID-19 esse problema era ignorado. Os
tratamentos eram pouco conhecidos, se acreditava que não havia muito o que
fazer. Hoje há evidências de que é importante tratar para minimizar tanto a
perda de qualidade de vida causada pela disfunção sensorial em si como para
prevenir outros problemas de saúde associados. Temos um incentivo para não
desistir do tratamento”, diz.
O artigo Association between chemosensory impairment with neuropsychiatric
morbidity in post acute COVID 19 syndrome: results from a multidisciplinary
cohort study pode ser lido em: https://link.springer.com/content/pdf/10.1007/s00406-022-01427-3.pdf.
Karina Toledo
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/estudo-relaciona-alteracao-de-olfato-ou-paladar-apos-a-covid-19-com-problemas-de-memoria/39273/
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