O Senado Federal
aprovou no ano passado, no último dia 17 de dezembro, o Projeto de Decreto
Legislativo (PDL), que ratifica a Convenção nº 186 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), norma internacional que estabelece direitos trabalhistas aos
trabalhadores marítimos. Após a ratificação da convenção pelo Congresso
Nacional, a norma ainda precisa ser sancionada pelo Presidente da República,
mediante Decreto Presidencial, com indicação da data de início da sua vigência
em território nacional.
Em meio a dúvidas
sobre a atual situação legal dos trabalhadores marítimos brasileiros e ao
esforço das grandes empresas do setor de cruzeiros marítimos, que insistem na
aplicação de normas que tragam consigo menos direitos trabalhistas, é certo que
a incidência da norma mais favorável ao trabalhador é assegurada pela
Constituição Federal, pela legislação brasileira e pela Constituição da própria
Organização Internacional do Trabalho.
A indagação que se
faz com a ratificação da Convenção da OIT pelo Brasil é se a inserção da
referida norma no ordenamento jurídico brasileiro apresentará algum impacto nos
direitos dos trabalhadores marítimos, especialmente em relação aos tripulantes
contratados no Brasil para trabalharem em navios de cruzeiros de bandeira
estrangeira.
Para responder
essa questão, é importante examinarmos o cenário atual desses trabalhadores.
Sabemos que o processo de recrutamento e seleção ocorre no Brasil, por meio de
agências recrutadoras nacionais, que buscam trabalhadores para exercerem,
principalmente, trabalhos de hotelaria, limpeza, cozinha e atendimento em
restaurantes e bares dos navios de cruzeiros. As agências prestam serviços para
as empresas internacionais de cruzeiros, que geralmente possuem filiais no
Brasil. Em seguida, os selecionados e aprovados por essas agências são
treinados no Brasil e é aqui o local onde são estabelecidas as condições do
trabalho que será realizado dentro da embarcação. Após o treinamento, os
trabalhadores embarcam e navegam por meses nesses navios de bandeira
estrangeira, exercendo as atividades para as quais foram contratados.
Conforme a lei
brasileira nº 7.064/82, artigo 3º, II, deve ser aplicada a legislação
trabalhista brasileira a tais trabalhadores que, embora tenham sido contratados
em território brasileiro, laboram em navios de bandeira estrangeira que navegam
em alto mar. O texto determina expressamente “a aplicação da legislação
brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o
disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no
conjunto de normas e em relação a cada matéria”.
É desse modo que
atualmente sete das oito Turmas do Tribunal Superior do Trabalho (TST),
consolidando um entendimento majoritário, rechaçam a aplicação da “Lei do
Pavilhão” ou “Lei da Bandeira do Navio”, lei internacional ratificada pelo
Brasil em 1929, que determina que seja aplicada sobre os trabalhadores a lei do
local da matrícula da embarcação. A Justiça brasileira tem determinado a aplicação
do princípio da norma mais favorável.
O ponto
fundamental para entender a discussão se trata do fato de que os direitos
previstos na Convenção da OIT, que está na iminência de ser ratificada pelo
Brasil, são inferiores aos direitos previstos na lei brasileira. A norma
internacional estabelece patamares mínimos de proteção ao trabalhador do mar,
que são inferiores à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e à Constituição
da República. No que se refere, por exemplo, ao registro da relação de emprego,
a lei brasileira prevê o reconhecimento de vínculo desses trabalhadores com as
empresas de navios de cruzeiros, com a determinação de anotação na carteira de
trabalho, além do recolhimento de contribuições previdenciárias. Por sua vez, a
Convenção da OIT apenas recomenda a elaboração de um contrato de trabalho que
contenha informações sobre as condições acordadas entre as partes, inexistindo
previsão de reconhecimento de vínculo de emprego, de pagamento das verbas
trabalhistas e de contribuições previdenciárias. Empresas de cruzeiros
marítimos defendem a aplicação das normas da convenção.
Já em relação ao
FGTS, a legislação brasileira estabelece o depósito de FGTS mensal no
percentual de 8%, direito não previsto na convenção. O mesmo ocorre em relação
ao pagamento de 1/3 sobre as férias, direito não previsto pela norma
internacional. No caso da jornada de trabalho, a Constituição brasileira e a
CLT limitam a jornada a 8 horas diárias e 44 horas semanais, até o limite de
duas horas extras por dia. Já a convenção estabelece que a jornada é limitada a
14 horas por cada período de 24 horas, até o limite de 72 horas por semana,
elastecimento não permitido pela nossa Constituição. Outro exemplo se trata do
percentual de horas extras, sob o qual a lei nacional determina que deverão ser
pagas com o adicional de 50%, ao passo em que a Convenção da OIT estabelece o
pagamento do adicional de somente 25% para o labor extraordinário. O adicional
noturno e o aviso prévio não inferior a 30 dias, direitos previstos na legislação
trabalhista brasileira, também não são assegurados pela norma internacional.
Além do que é
determinado pela lei nº 7.064/82 e o que vem sendo entendido pelo Poder
Judiciário, o próprio parágrafo 8º do Artigo 19 da Constituição da Organização
Internacional do Trabalho determina que, de modo algum, a adoção de qualquer
Convenção da OIT por país membro poderá afetar lei daquele país que assegure
condições de trabalho mais favoráveis. Assim, a ratificação da Convenção não
afastará, de modo algum, a aplicação da lei trabalhista brasileira aos trabalhadores contratados no Brasil para trabalharem
em cruzeiros marítimos de bandeira estrangeira.
A redução de
direitos dos trabalhadores marítimos iria contra aos próprios objetivos da
Organização Internacional do Trabalho, de promover melhores condições de
trabalho, visando à superação da pobreza e à redução das desigualdades sociais
em todo o mundo. As convenções da OIT são editadas a partir de um contexto de
graves violações a direitos trabalhistas e aos direitos humanos. Essas
convenções, bem como as recomendações da OIT, estabelecem patamares mínimos de
trabalho decente, a fim de facilitar a adesão de mais países, bem como
facilitar que sejam cumpridas por todos os estados-membros. Como pode ser
constatado facilmente em depoimentos de trabalhadores marítimos e em processos
que tramitam hoje na Justiça, é comum que o dia a dia nos navios haja caso de
trabalhadoras e trabalhadores que sofrem assédio moral, assédio sexual,
humilhações e que sejam submetidos a condições degradantes de trabalho e de
alojamento.
A ratificação da
Convenção sobre o Trabalho Marítimo demonstra que o Brasil está alinhado com os
altos propósitos da OIT de promover um trabalho cada vez mais digno para os
trabalhadores marítimos e não afasta, de modo algum, a aplicação da lei
trabalhista brasileira, que é norma mais favorável e tem sua incidência
assegurada por lei específica (artigo 3º, II, da Lei nº 7.064/82) e pela
própria Constituição da OIT.
Denise Arantes - advogada especialista em Direito do Trabalho, sócia do
escritório Mauro Menezes & Advogados, com atuação no âmbito do TST em
causas de trabalhadores de cruzeiros marítimos.
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