Com a escalada da violência, é muito comum que
vozes abalizadas ecoem pelo país ora para pregar a alteração profunda tanto da
nossa legislação penal, quanto das nossas leis processuais penais, ora para
humanizar o sistema penal e penitenciário, para assim diminuir o alto índice de
reincidência. De fato, como o Poder Público não vem conseguindo baixar os
índices de violência, a profunda alteração do nosso sistema penal vem sendo
apresentada à sociedade como a (única) saída para solucionar o problema.
Porém, é bom deixar claro que o Direito Penal e o
Processual Penal não podem ser vistos como a panaceia de todos os nossos males.
A efetiva mudança do quadro atual passa muito mais por políticas públicas
efetivas, que invistam na educação, do que pelo incremento das penas de alguns
crimes ou pela adoção de um maior rigor processual. É preciso levar em conta
que a sociedade brasileira é extremamente complexa e heterogênea. Aliás, a bem
da verdade, vivemos uma situação bem peculiar, no que diz respeito às propostas
de alteração do nosso sistema punitivo.
De um lado, temos uma Constituição Federal
extremamente liberal que, justamente por ter sido pensada e elaborada logo após
um duro e longo período de ditadura militar, trouxe para o papel, como forma de
evitar um possível retrocesso aos tempos do autoritarismo, diversos direitos e
garantias individuais do cidadão. Aliás, não é à toa que, logo após a sua
promulgação em 1988, a nossa Carta Magna foi alcunhada de “Constituição Cidadã”.
Aqui, é relevante dizer que a nossa Constituição é, de fato, pródiga ao
prever, no seu artigo 5º, as garantias e direitos fundamentais do cidadão,
sendo certo que tais dispositivos podem ser compreendidos tanto como um freio à
ação autoritária do Estado quanto como um escudo para proteger o cidadão contra
as arbitrariedades e o abuso de poder estatais.
Porém, de outro lado, uma parcela significativa da
nossa sociedade, na contramão do espírito do legislador constituinte, defende
ideias antiquadas, retrógradas e arcaicas, tais como a previsão legal da pena
de morte, a redução da maioridade penal, a extinção do benefício das saídas
temporárias previsto na Lei de Execução Penal, o uso de provas ilicitamente
obtidas contra os interesses do acusado e, também, a adoção da prisão
provisória como regra, após a condenação dos acusados em primeira e/ou segunda
instâncias.
Parece, às vezes, que vivemos em dois Brasis bem
distintos. Um perfeitamente adaptado aos ideais liberais de um legítimo Estado
Democrático de Direito. E outro que, por sua vez, ainda se vê preso às práticas
truculentas e vingativas dos tempos da ditadura. Sem dúvida alguma, um
atrapalha o outro, um Brasil vê o Outro como seu obstáculo e, por isso, não
raro, surgem conflitos quase insolúveis. Mas, apesar dessa dicotomia de ideias,
os dois insistem em um mesmo erro: acreditam que a solução de todos os nossos
males está ou na alteração do Direito Penal ou, então, na do Processo Penal.
O grupo mais liberal defende a modernização do
nosso sistema carcerário, a mitigação do uso exagerado das prisões provisórias,
a garantia dos direitos dos presos, o respeito à dignidade humana e, claro,
adota os princípios da ampla defesa, da presunção de inocência e do devido
processo legal como verdadeiras bandeiras para salvaguardar as cláusulas
pétreas previstas no artigo 5º, da nossa Constituição Federal. Já o outro, por
sua vez, encabeçado por entidades ligadas ou ao Ministério Público ou à
Magistratura, faz vistas grossas à falência do nosso sistema carcerário, defende
o incremento das penas de diversos delitos, e, inclusive, chega até a formular
propostas de emendas constitucionais que tenham por escopo permitir um
“abrandamento” de diversos princípios e/ou garantias fundamentais.
As discussões e os debates recentes que tivemos em
torno da “redução da maioridade penal”, bem como a questão da possibilidade, ou
não, da prisão após a condenação em segundo grau, refletem bem esses dois
Brasis tão antagônicos.
O curioso nisso tudo é que, lamentavelmente, a cada
“novo debate”, os ânimos têm se tornado cada vez mais acirrados. De fato, o
“meio-termo” já quase não existe.
Da forma como estamos hoje, ou o cidadão é
favorável ao Brasil mais liberal, que assegure e proteja as garantias
constitucionais do cidadão, e, nesse caso, essa pessoa é absurdamente
considerada como alguém contrário à “Lava Jato” e a favor da corrupção, ou,
então, temos aquele que defende o recrudescimento das leis penais e a mitigação
de direitos, o qual é visto pelo outro grupo como uma pessoa reacionária e
extremista.
Essa dicotomia não nos ajuda em nada. Isso só faz
crescer a tensão social, sem nos trazer qualquer resultado prático no que toca
ao combate da criminalidade.
Já é hora de deixar o Direito Penal e o Processual
Penal em paz. Positivamente, não será por intermédio das nossas leis penais que
alcançaremos a tão sonhada paz social.
Salvo algumas alterações pontuais, o que temos hoje
é suficiente para reprimir e punir quem quer que seja. Além de reformas sociais
profundas – com ênfase na educação e na diminuição da desigualdade social –, a
união desses dois Brasis que nunca se entenderam, é, sem dúvida, a grande saída
para conseguirmos combater, eficazmente, a criminalidade.
Euro
Bento Maciel Filho - mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Também é
professor universitário, de Direito Penal e Prática Penal, advogado
criminalista e sócio do escritório Euro Maciel Filho e Tyles – Sociedade de
Advogados.
@eurofilhoetyles; https://www.facebook.com/EuroFilhoeTyles/
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