Falar sobre autismo é essencial. Mas e se ampliarmos essa conversa? Se, além das crianças, olharmos para aqueles que cresceram sem respostas? O autismo não desaparece com a idade – a falta de suporte, sim, pode tornar suas vidas muito mais difíceis.
No dia 2 de abril, quando o mundo se ilumina de azul pelo Dia Mundial de Conscientização do Autismo, uma parte essencial dessa história continua na escuridão: os adultos no espectro.
Muitas dessas pessoas cresceram sem diagnóstico, sem apoio e sem representatividade.
Agora, na vida adulta, enfrentam desafios invisíveis – e consequências alarmantes. São a "Geração Perdida", como apontam especialistas, uma população que encara índices elevados de depressão, ansiedade e até mesmo de mortalidade precoce.
"Estamos diante de uma crise humanitária silenciosa, uma emergência de saúde pública negligenciada por tempo demais. Adultos com autismo não apenas lutam contra a invisibilidade social, mas também contra um risco de morte prematura que não podemos mais ignorar. A falta de diagnóstico e suporte adequado leva a comorbidades como depressão e ansiedade, que aumentam drasticamente o risco de suicídio", alerta o Dr. Matheus Trilico, neurologista e referência nacional em TEA.
Um estudo recente publicado na revista Psychiatry Research revela dados chocantes: mais de 13 mil suicídios entre pessoas autistas foram registrados apenas em 2021, resultando em uma perda trágica de aproximadamente 621 mil anos potenciais de vida.
"Esses números não são apenas estatísticas, são vidas interrompidas, famílias devastadas e um grito de socorro que nossa sociedade tem sistematicamente ignorado. É crucial entender que o suicídio em pessoas com TEA muitas vezes está ligado à dificuldade em lidar com o estresse, à discriminação e à falta de acesso a serviços de saúde mental adequados", enfatiza Dr. Trilico.
A pesquisa "Autistic Spectrum Disorder: The Lost Generation", publicada no The Lancet Psychiatry, expõe uma realidade alarmante: adultos com TEA têm sido sistematicamente negligenciados pelas políticas públicas e pela atenção social. Este estudo ressalta que a falta de reconhecimento e suporte adequados impacta diretamente na qualidade de vida, saúde mental e oportunidades de emprego para essa população.
"Estamos falhando com uma geração inteira de indivíduos neurodiversos", alerta Dr. Matheus Trilico, neurologista especializado em TEA.
A falta de dados epidemiológicos precisos sobre a prevalência de TEA em adultos no Brasil tem sido um obstáculo crítico para a criação de políticas públicas eficazes, desde programas de suporte ao emprego até acesso à saúde mental e moradia assistida, que poderiam oferecer suporte para a vida independente.
Para preencher essa lacuna crucial, Dr. Trilico lançou o projeto “Autismo Brasil” (autismobrasil.info), uma iniciativa independente e sem fins lucrativos que visa mapear o TEA no país, com foco especial na população adulta.
"Este projeto é nossa resposta à necessidade urgente de dados confiáveis sobre o autismo no Brasi. A base de dados, custeada com recursos próprios do médico, busca oferecer uma visão clara e precisa sobre a prevalência do TEA em diferentes faixas etárias e regiões, livre de influências políticas ou governamentais. A iniciativa se baseia em princípios de open data, visando a transparência e a disseminação do conhecimento ", explica o especialista .
Dr. Trilico enfatiza também a importância da
participação da comunidade: "Cada resposta ao nosso questionário é uma
contribuição vital para construirmos um retrato fidedigno do autismo no Brasil,
fundamental para impulsionar políticas públicas mais eficazes e iniciativas de
inclusão em todo o país. Por exemplo, os dados coletados podem influenciar a
criação de diretrizes clínicas mais adequadas e a alocação de recursos para
serviços de apoio”, ressalta o médico.
O Peso do Diagnóstico Tardio
O diagnóstico tardio do TEA em adultos não é apenas um atraso médico, mas uma sentença de anos de sofrimento desnecessário. Muitos passam décadas lutando contra desafios inexplicáveis, enfrentando incompreensão, isolamento e, muitas vezes, diagnósticos errôneos de outras condições de saúde mental.
"Imagine viver toda sua vida sentindo-se um estranho em seu próprio corpo e mente, sem entender o por quê?" O diagnóstico tardio é como finalmente receber um mapa depois de anos perdido em um labirinto. É um alívio, mas também um lembrete doloroso do tempo perdido e das oportunidades perdidas. Muitos adultos relatam que, após o diagnóstico, conseguem entender melhor seus comportamentos e necessidades, o que facilita a busca por estratégias de adaptação e suporte. Por exemplo, uma pessoa que sempre teve dificuldade em manter empregos pode, após o diagnóstico, entender que a dificuldade vem da disfunção sensorial a ruídos no ambiente de trabalho e, com isso, buscar um ambiente mais adequado”, completa o neurologista.
Mercado de Trabalho: Talentos Desperdiçados
A invisibilidade do autismo em adultos tem um impacto devastador no mercado de trabalho. Segundo Dr. Trilico, estamos desperdiçando um potencial imenso. Adultos com TEA frequentemente possuem habilidades extraordinárias em áreas específicas, como programação, análise de dados, design e artes visuais, mas são marginalizados por uma sociedade que não sabe como acolher a neurodiversidade.
Para o médico, a falta de adaptações e compreensão no ambiente de trabalho não apenas priva os autistas de oportunidades, mas também priva a sociedade de inovações e perspectivas únicas que esses indivíduos podem oferecer.
"Empresas que adotam práticas de inclusão
neurodiversas relatam aumento da produtividade, da criatividade e da inovação.
"É importante que as corporações ofereçam treinamento para seus
funcionários sobre como interagir e colaborar com colegas autistas, além de
adaptar o ambiente de trabalho para atender às necessidades sensoriais e
comunicacionais específicas. Por exemplo, permitir o uso de fones de ouvido com
cancelamento de ruído ou oferecer horários de trabalho flexíveis”, sugere
Trilico.
Relacionamentos: A Luta Contra a Solidão
Para muitos adultos com TEA, construir e manter relacionamentos é um desafio monumental.
"A solidão entre adultos autistas é uma
epidemia silenciosa. Muitos são erroneamente rotulados como frios ou
desinteressados quando, na verdade, estão buscando por conexão ao mesmo tempo
em que lutam para lidar com as complexidades sociais. A dificuldade em
interpretar sinais sociais, a ansiedade em se expor socialmente e a dificuldade
em expressar emoções podem dificultar a formação de amizades e relacionamentos.
É fundamental que a sociedade compreenda que a dificuldade em interagir
socialmente não significa falta de desejo por conexão. Programas de habilidades
sociais e grupos de apoio podem ajudar adultos com TEA a desenvolverem
habilidades de comunicação e a construírem relacionamentos
significativos", sugere Dr. Trilico.
Um Chamado à Ação
Dr. Matheus Trilico faz um apelo urgente: "Não
podemos mais nos dar ao luxo de ignorar os adultos com autismo. Cada dia de
inação custa vidas. Precisamos de uma revolução na forma como vemos, tratamos e
incluímos essas pessoas em nossa sociedade".
O neurologista propõe ações imediatas:
Campanhas massivas de conscientização sobre TEA em
adultos, com foco na desmistificação de estereótipos e na promoção da
compreensão sobre as necessidades e os talentos dos autistas.
Treinamento especializado para profissionais de
saúde em diagnóstico e tratamento de TEA em adultos, incluindo médicos de
família, psicólogos, psiquiatras, neurologistas, clínicos gerais e terapeutas
ocupacionais. É crucial que os profissionais de saúde estejam preparados para
identificar os sinais de TEA em adultos e oferecer intervenções adequadas.
Políticas de inclusão robustas no mercado de
trabalho, com incentivos fiscais para empresas que adotem práticas
neurodiversas, como a criação de programas de mentoria e a adaptação de
processos seletivos.
Programas de suporte social e psicológico
específicos para adultos com TEA, incluindo grupos de apoio, terapia individual
e familiar, e serviços de assistência social.
Maior representatividade de adultos autistas na mídia e em posições de liderança, para que suas vozes sejam ouvidas e suas perspectivas sejam consideradas. É importante que os próprios autistas sejam protagonistas na luta por seus direitos e na promoção da inclusão, sem vergonha de revelarem seu diagnóstico por medo de retaliação ou preconceito.
"Neste Dia Mundial de Conscientização do Autismo, peço que olhemos além das crianças e reconheçamos os adultos que têm lutado sozinhos por tempo demais. É hora de resgatar a 'Geração Perdida' e construir uma sociedade verdadeiramente inclusiva para todos os neurodiversos, em todas as fases da vida. A inclusão não é apenas um ato de caridade, mas um imperativo moral e social. Uma sociedade que valoriza a diversidade é uma sociedade mais justa, criativa e próspera”, conclui Dr. Matheus Trilico.
Dr. Matheus Luis Castelan Trilico - CRM 35805PR, RQE 24818. * Médico pela Faculdade Estadual de Medicina de Marília (FAMEMA); * Neurologista com residência médica pelo Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (HC-UFPR); * Mestre em Medicina Interna e Ciências da Saúde pelo HC-UFPR * Pós-graduação em Transtorno do Espectro Autista.
https://blog.matheustriliconeurologia.com.br/
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