"Não importa que a vulneração se mostre velada pelo silêncio do julgador ou se aninhe oculta nas dobras e refego da sentença. Não montaria até que a sentença proclamasse e anunciasse fieldade e obediência ao texto malferido." Nessa lição citada por José Afonso da Silva, referia-se o Ministro Orozimbo Nonato, que atuou no Supremo Tribunal Federal (STF) entre 1941 e 1960, ao caso em que a decisão judicial é aparentemente conforme à lei, mas a desrespeita.
Afirmava, então, encontrar-se presente questão
federal que poderia ser veiculada através do recurso extraordinário. Ao ler essa passagem, porém, alguns têm impressão de que
ele se referia à hipótese em que há divergência entre a vontade real e a
vontade declarada no julgado.
Mas o tema é mais amplo: diz respeito a todas as
esferas em que pode haver tomada de decisão estatal, além da judicial,
incluindo a administrativa e a legislativa, e tem várias camadas. Um dos
aspectos que chamam a atenção diz respeito à possibilidade de o grau de
comprometimento da vontade dos agentes estatais ser tão profundo e disseminado
a ponto de se colocar em risco a própria ideia de Estado Democrático de
Direito.
Para alguns, o cinismo é uma das características da
sociedade moderna. O filósofo francês Gilles Lipovetsky, na obra Os tempos
hipermodernos, usa o termo “espetáculo cerimonial”: os agentes
vivem a afirmar princípios em discursos que são por eles mesmos deixados de
lado em sua vida social. A desfaçatez, o descaramento e o descaso pela ética
orientam a prática cotidiana, enquanto o discurso é marcado por palavras de
ordem em defesa da moral e dos bons costumes.
A professora Heidi Li Feldman, da Universidade de
Georgetown, em mensagem veiculada em sua conta no Twitter, chamou a atenção
para problema que, a seu ver, vem acontecendo nos EUA. Normalmente, diz ela,
estuda-se e ensina-se direito naquele país partindo-se do pressuposto de que
presidentes, governadores, legisladores estaduais e federais e juízes dos
tribunais têm um compromisso básico com o Estado de Direito e a Justiça.
De fato, quando estudamos e lecionamos sobre a
Constituição ou as leis, os atos dos administradores públicos ou as decisões
judiciais, também nós, por aqui, partimos do pressuposto de que todos os
agentes que participam dessa construção têm aspirações democráticas e pretendem
realizar os direitos fundamentais previstos na Constituição. Estudamos os erros
e as falhas como uma patologia, não como algo que está na
própria fisiologia do funcionamento do Estado. Retornando ao que
escreveu a professora Heidi Li Feldman, destaca ela o fato de que os estudiosos
do direito devem procurar demonstrar que o discurso jurídico pode ser utilizado
para dissimular a violação a direitos fundamentais.
É possível fazer algumas aproximações entre essas
reflexões e as que fez, em outro continente, o professor Joaquín Urías, da
Universidade de Sevilla, em manifestação recente publicada no site Público,
dedicada à análise de dificuldades que, segundo afirma, vêm se apresentando na
Espanha, e cujo título (“Asedio a la democracia”) tomo aqui de
empréstimo.
Narra ele um episódio em que, através de ações
policiais orientadas, realizadas com o apoio da imprensa, influencia-se o
debate público com notícias falsas, com o propósito de macular eleições a serem
realizadas naquele país. Diz ele (em tradução livre): "A
democracia consiste essencialmente na liberdade individual e coletiva de
decidir nosso próprio destino. Exige, por um lado, que a direção da sociedade
obedeça à vontade coletiva expressa por meio de eleições e mecanismos de
participação. Por outro lado, que cada indivíduo goze de um espaço invulnerável
de autodeterminação: aquele garantido pelos direitos fundamentais, garantidos
judicialmente de forma absoluta, mesmo contra o poder da maioria".
Adiante, em outro trecho, prossegue: "O funcionamento partidário das forças de
segurança representa assim uma ameaça direta contra milhões de cidadãos que
pensam de forma diferente. Ela só poderia ser combatida com um judiciário
poderoso e independente, capaz de cumprir sua tarefa de garantidor de direitos
e freio ao poder". E, aproximando-se da conclusão de seu
artigo, lamenta: "Nas faculdades continuaremos explicando a Constituição,
os direitos fundamentais e a democracia. Mas esses conceitos não são mais
alusivos a uma realidade espanhola".
O assédio à democracia, como se vê, é algo que
ocupa o pensamento de muitos estudiosos do direito, em vários locais do globo
terrestre. Não se pode afirmar que houve "a vitória definitiva do materialismo e do
cinismo", pois nossa época é também "marcada por uma
reconciliação inédita com os fundamentos humanistas", como destaca
Lipovetsky na obra citada.
Mas, em um contexto em que o Estado Democrático de
Direito se encontra em crise e em risco, qual o papel dos juristas? Talvez uma
das respostas possa ser encontrada neste texto de Celso Furtado, em seus Ensaios
sobre a cultura: "que é a utopia senão o fruto da percepção de
dimensões secretas da realidade, um afloramento das energias contidas que
antecipa a ampliação do horizonte de potencialidades aberto ao homem? Esta ação
de vanguarda constitui uma das ações mais nobres a serem cumpridas pelos
intelectuais nas épocas de crise. Cabe-lhes aprofundar a percepção da realidade
social para evitar que se alastrem as manchas de irracionalidade que alimentam
o aventureirismo político; cabe-lhes projetar luz sobre os desvãos da história,
onde se ocultam os crimes cometidos pelos que abusam do poder; cabe-lhes
auscultar e traduzir as ansiedades e aspirações das forças sociais ainda sem
meios próprios de expressão".
Nesse ambiente, os estudiosos do direito, em sua
atuação, têm a grave tarefa de se manifestar de modo a impedir que a
Constituição e as leis sejam interpretadas e usadas contra o próprio Estado de
Direito, em um assédio à democracia.
José Miguel Garcia Medina -
doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense e
professor associado na UEM. Integrou a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado
Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo
Civil de 2015. Advogado e árbitro. Sócio do escritório Medina Guimarães
Advogados.
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