Área de savana queimada a cada dois anos, na Reserva Natural Serra do Tombador, Goiás. É possível observar a grande diversidade de espécies de gramíneas e ervas do componente aéreo da vegetação (foto: Alessandra Fidelis/Unesp)
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Savana não é floresta degradada. E não se reconstrói savana plantando árvores. Essas afirmações, que têm sido feitas há tempos pelos principais pesquisadores do tema, foram reiteradas em edição especial da revista Science publicada no início deste mês. O assunto tornou-se ainda mais relevante, uma vez que a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu o período entre 2021 e 2030 como a “Década das Nações Unidas da Restauração de Ecossistemas”. Porém, alguns projetos com esse objetivo desconsideram as especificidades de biomas complexos como o das savanas e tentam fazer do plantio indiscriminado de árvores uma espécie de remédio para todos os males.
“Existem muitas florestas degradadas
no mundo. Mas esse conceito não se aplica às savanas. E a expressão
‘savanização’, quando utilizada, por exemplo, em referência a áreas
desflorestadas da Amazônia, torna-se um termo indevido, que atrapalha ao invés
de ajudar. Porque, ao contrário das florestas degradadas, as savanas são biomas
muito antigos, complexos e ricos em biodiversidade”, diz a ecóloga Alessandra Fidelis,
professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coautora do artigo.
“Estamos
na década da restauração e a preservação e restauração dos ecossistemas de tipo
savânico é urgente. Porém, como restaurá-los? O plantio de árvores não é a
solução. Tem-se a impressão de que esses ambientes são recentes e simples.
Porém, as savanas tropicais, por exemplo, existem há milhões de anos. E possuem
uma alta complexidade, tanto em seu componente aéreo, formado pelo estrato
herbáceo contínuo, rico em espécies de gramíneas e ervas, e por arbustos e
árvores esparsas, quanto, principalmente, pela grande diversidade funcional
subterrânea, formada pelas raízes e órgãos subterrâneos de reserva. Esses
órgãos são os que dão resiliência ao sistema, pois possuem reservas e também
armazenam as gemas, que se transformam em novos ramos depois que, por exemplo,
a área pega fogo. Não sabemos ainda como restaurar isso”, acrescenta Fidelis.
A
pesquisadora informa que a gramínea C4, que participa do estrato herbáceo,
surgiu há 25 milhões de anos. E que as savanas se espalharam por vastas áreas
do planeta há 10 milhões de anos. “A maior parte das espécies que compõem as
savanas foi selecionada e evoluiu por meio de distúrbios, como fogo e
herbivoria. Isso não é algo que se possa reconstruir com um estalar de dedos.
Se essa vegetação se queima, por exemplo, ela rapidamente volta a brotar. Mas,
se os órgãos subterrâneos e as raízes são arrancados por máquinas agrícolas,
não há rebrota possível. Há savanas que foram devastadas há mais de um século e
até agora não se recompuseram”, afirma.
Cerrado ameaçado
Essa
consideração é especialmente importante no Brasil, porque o Cerrado, que
constitui a savana mais biodiversa do mundo, está desaparecendo a cada dia, sob
a pressão da agricultura de larga escala. Sua sobrevivência é ainda mais
precária do que a da floresta amazônica.
Fidelis conta que as formações
campestres e savânicas, que o artigo da Science chama
genericamente de “campos primários” (old-growth grasslands),
cobrem nada menos do que 40% da superfície terrestre. São ecossistemas que
formam paisagens abertas, compostas principalmente por gramíneas, ervas,
arbustos e árvores de pequeno ou médio porte. Elas se espalham por 27% do
território brasileiro e predominam em quatro dos seis biomas existentes no
país: o Cerrado, a Caatinga, o Pampa e o Pantanal. Mas também aparecem nos
outros dois biomas: nas campinaranas, da Amazônia, e nos campos de cima da
serra, da Mata Atlântica.
Com sua
rica biodiversidade, esses campos e savanas prestam “serviços ecológicos”
diretos a mais de 1 bilhão de habitantes do planeta. Mas, no Brasil, sua
importância é ainda maior, porque o Cerrado é a única savana do mundo dotada de
rios perenes e o berço de alguns dos mais importantes rios do país – o Xingu, o
Tocantins, o Araguaia, o São Francisco, o Parnaíba, o Gurupi, o Jequitinhonha,
o Paraná e o Paraguai, dentre outros.
Nunca é
demais lembrar que 77,2% da matriz elétrica brasileira é suprida pela
hidroeletricidade. E que o país possui o terceiro maior potencial hidrelétrico
tecnicamente aproveitável do mundo. A degradação do Cerrado põe em risco esse
fabuloso recurso energético e ameaça a oferta de água doce para o consumo da
população e para as próprias atividades agrícolas, no momento em que, devido à
crise climática, a água se torna um dos bens mais preciosos do planeta.
“Diante da
escalada da destruição, é natural que as pessoas depositem suas esperanças na
restauração. Mas precisamos ser bastante criteriosos em relação a isso, porque
vários projetos confundem restauração com o mero plantio de árvores. E esse
plantio desajeitado constitui uma ameaça a mais, criando florestas artificiais
em ecossistemas de savana. Por exemplo, quase 1 milhão de quilômetros quadrados
de campos e savanas da África foram definidos como alvos para o plantio de
árvores até 2030, ignorando-se sua especificidade e seu valor em termos de
biodiversidade e serviços ecossistêmicos”, pondera Fidelis.
E
prossegue: “As características únicas desses ecossistemas, integrando alta
complexidade, diversidade tanto da vegetação aérea como dos componentes
subterrâneos, resiliência a distúrbios como o fogo e a herbivoria, tudo isso,
que se constituiu ao longo de milhões de anos, torna a restauração muito
difícil. Uma degradação que destrua o banco de gemas e as estruturas subterrâneas
pode levar a danos irreversíveis”.
A
pesquisadora destaca três pontos importantes que se deve ter em mente em
projetos de restauração desses sistemas em longo prazo. O primeiro é que grande
parte das espécies rebrota, ou seja, depende da presença de estruturas
subterrâneas com reservas e de um banco de gemas viáveis. Não regenera por
germinação. Por isso, a importância do banco de gemas e das estruturas
subterrâneas não pode ser subestimada.
O segundo
é que a restauração desses ecossistemas não é rápida e deve ser cuidadosamente
monitorada, pois há problemas com invasões biológicas (por exemplo, de
gramíneas exóticas, de tipo braquiária) ou mesmo com o adensamento lenhoso, que
podem mudar completamente o rumo da restauração.
O terceiro, finalmente, é que, nesses
ecossistemas, existem feedbacks de
extrema importância entre solo, vegetação, fogo e herbivoria. A relação entre
esses termos muda ao longo do tempo. E é preciso entender como ela se dá, o que
é preciso fazer para mantê-la e quando promovê-la, se necessário. Por exemplo,
por meio do manejo criterioso com o fogo.
“Uma mensagem importante é que temos
de guiar a restauração desses ecossistemas com base nas características do que
chamamos de old-growth grasslands, ou seja, dos
campos e savanas primários. Esses sistemas complexos, funcionalmente falando,
foram produzidos pela natureza ao longo de milhões de anos. É preciso aprender
com a natureza”, conclui Fidelis.
A pesquisadora já coordenou vários
projetos de manejo do Cerrado com apoio da FAPESP. E conduz, atualmente, o
projeto “Uso do manejo adaptativo na
otimização do manejo a longo prazo de espécies invasoras prejudiciais à
biodiversidade e economia rural”.
O artigo Ancient grasslands guide ambitious goals in grassland restoration pode
ser acessado em: www.science.org/doi/10.1126/science.abo4605.
https://agencia.fapesp.br/plantio-indiscriminado-de-arvores-descaracteriza-savanas-em-vez-de-restaura-las-alertam-cientistas/39351/
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