Trabalho foi divulgado na revista PLOS ONE. Equações sugerem ser possível estimar a variabilidade da população viral com base em dados epidemiológicos (imagem: acervo dos pesquisadores)
As mutações do SARS-CoV-2 são um dos
temas mais quentes do momento. As novas variantes do vírus estão fazendo com
que a pandemia de COVID-19 recrudesça em lugares onde parecia controlada. E
podem prolongar a fase crítica atual muito além do tempo esperado.
Um estudo, realizado no Instituto de
Física Gleb Wataghin, da Universidade Estadual de Campinas (IFGW-Unicamp),
modelou as mutações sofridas pelo SARS-CoV-2 durante seu processo de replicação
e, por decorrência, a evolução genética do vírus ao longo da pandemia. Os dados
foram publicados na revista PLOS ONE.
No artigo,
os autores enfatizam o alerta já feito por outros cientistas: as populações que
não estão sendo vacinadas e os grupos sociais que se recusam a receber a vacina
favorecem o aparecimento de variantes. E, se esse problema não for resolvido
urgentemente, a pandemia pode ter um novo pico em escala global.
“Como se
sabe, os vírus são organismos muito simples, incapazes de se reproduzir por si
mesmos. Para poderem replicar o seu RNA, precisam utilizar as células do
hospedeiro. E, ao danificá-las, causam a doença. Ocorre que, durante o processo
de replicação, erros de cópia são inevitáveis. Os organismos mais complexos
possuem mecanismos para correção de erros. Mas os vírus não possuem. Caso algum
desses erros proporcione uma vantagem ao vírus em termos de propagação, essa
mutação passará a ter importância. E, eventualmente, poderá até predominar. Se
a propagação ocorre sem freios, devido à não vacinação, as mutações tendem a
acontecer cada vez mais e a se espalhar pelo globo”, diz o físico Marcus de
Aguiar, professor do IFGW-Unicamp e coordenador do estudo.
Ao
contrário do que dizem os negacionistas, não é a vacinação que favorece a
mutação. Mas a falta dela, explica o pesquisador.
“Quando se
vacina grande parte da população, o vírus para de circular. E, circulando
menos, diminui a taxa de reprodução viral. E, portanto, a chance de aparecerem
novas variantes.”
Os modelos
tradicionais de epidemiologia enfocam os números de pessoas infectadas, suscetíveis
e recuperadas ao longo do tempo. No estudo em pauta, o modelo incluiu a
descrição do RNA do vírus. “Saber quão diferentes são os microrganismos em
circulação em relação aos vírus originais é importante para entender o
aparecimento de novas variantes. Também para estimar se, mesmo que já tenha
sido infectada pelo vírus original, uma pessoa poderá vir a ser reinfectada
pela variante. E, ainda, para prever se o novo patógeno poderá escapar ou não
da ação de vacinas projetadas para o original”, explica Aguiar.
Como acontece com todo modelo
científico, o modelo desenvolvido no estudo é uma aproximação idealmente
simplificada daquilo que de fato acontece na realidade. A base a partir da qual
ele foi construído é o modelo do tipo SEIR, já consagrado em epidemiologia. A
sigla SEIR é formada pelas letras iniciais de quatro palavras em língua
inglesa: “Susceptible” (Suscetível), “Exposed”
(Exposto), “Infectious” (Infectante) e “Recovered”
(Recuperado). “Suscetível” é a pessoa que pode ser infectada; “exposta”, a infectada,
mas não infectante; “infectante”, a infectada e infectante; “recuperada”,
aquela que já se recuperou da doença e, idealmente, não poderia ser mais
infectada.
“Para
evitar uma complexidade excessiva, que tornaria o modelo matematicamente
inviável, consideramos que indivíduos classificados como ‘recuperados’ não
podem ser infectados por nenhuma variante que possa surgir. Também consideramos
as mutações como neutras, ou seja, que não conferem ao vírus mutado nenhuma
vantagem ou desvantagem adicional em relação ao vírus que lhe deu origem. Não é
isso que acontece de fato na realidade. Mas adotamos essas simplificações para
poder concentrar o foco em nosso objetivo, que era estudar o acúmulo das
mutações virais durante a pandemia e o quão diferentes os vírus podem ficar”,
esclarece o pesquisador.
Para
atingir esse objetivo, o modelo foi acrescido de uma descrição dos vírus, a
partir de seu RNA, com 29.900 bases nitrogenadas, e uma taxa de mutação 0,001
por base por ano – dados esses obtidos a partir da estrutura e do comportamento
do SARS-CoV-2.
“Enquanto
um indivíduo permanece infectado, o vírus pode sofrer mutações e ser
transmitido. Calculamos a ‘distância’ entre o vírus original e a variante a
partir do número de bases nitrogenadas distintas que eles apresentam. Nossas
equações sugerem que é possível prever, com dados epidemiológicos [número de
suscetíveis, infectados e recuperados], a variabilidade da população viral
[‘distância média’ entre as sequências de RNA], sem que seja necessário ter
acesso a uma enorme quantidade de dados genéticos”, diz Aguiar.
Com o
intuito de testar o modelo, os pesquisadores utilizaram as equações para
mostrar, a partir dos dados da epidemia na China, no início de 2020, como seria
a evolução da “distância genética média” entre os vírus que teriam
hipoteticamente surgido durante aquele período. Comparando o resultado com as
distâncias calculadas a partir de dados genéticos obtidos localmente no mesmo
período, a previsão apresentou boa concordância com os dados reais.
“A propagação
do vírus através de comunidades distintas [cidades, países etc.] pode levar a
sequências bastante diferentes da original, aumentando as chances de
reinfecção, dependendo fortemente da conectividade entre essas comunidades.
Quanto menos conectadas duas comunidades, maior a diferença no vírus que uma
pode transmitir para a outra. Isso aumenta a chance de que o vírus circulante
em uma das comunidades seja capaz de escapar do controle do sistema imune dos
indivíduos da outra comunidade”, resume o pesquisador.
E
acrescenta: “É importante ressaltar que, para que ocorra a mutação efetiva do
vírus, conferindo-lhe vantagens ou desvantagens, é necessário que os defeitos
de replicação ocorram em locais específicos do RNA viral. Assim, distâncias
genéticas altas aumentam a chance de que existam mutações importantes, mas não
as garantem. E nossas considerações são baseadas nessa perspectiva”.
O estudo recebeu apoio da FAPESP por
meio de um Projeto Temático; de um Auxílio à Pesquisa Regular concedido a Aguiar; e da Bolsa de Doutorado de Vitor Marquioni Monteiro, orientando de Aguiar e autor principal do artigo.
O artigo Modeling neutral viral mutations in the spread of SARS-CoV-2
epidemics pode ser acessado em https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0255438.
José Tadeu
Arantes
Agência
FAPESP
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