Nasci com o cordão umbilical amarrado no pescoço. A
parteira murmurava: “vai morrer, coitadinho, vai morrer”. Não morri. E ganhei
um mote para começar a contar minha história: "já nasci com a corda no
pescoço". E também para afirmar uma qualidade insuspeita: não tem desafio
que eu não saiba dar conta. Sou filho caçula e fui muito tímido na infância e
na adolescência. Sempre fui gordinho e desajeitado para os esportes. Aos olhos
dos outros era um menino sem graça e, por isso sofri todo o tipo de bullying.
Depois de lamentar em vão, aos poucos aprendi
a rir de mim mesmo antes dos outros e assim tornei o bullying dos outros em
piada velha para mim. Eu não me deixava em paz, não me cobrando, mas me
conhecendo; não lamentando quem eu era, mas aprendendo sobre quem eu era. Não
preocupado com o que os outros iam achar, mas procurando saber o que eu gostava
em mim e o que eu não queria que fosse chamado de eu. O que faz
sobreviver é autocrítica, que é uma espécie de estética do erro. Os outros
sempre vão atacar esses nossos erros e, de certa maneira, aprendi que isso é
muito útil, exceto se somos muito negligentes e desatentos de não prestar
atenção.
Quando ficou claro que eu tinha mesmo muitos
defeitos, foi uma libertação. Estava pronto para o mundo, um mundo que é como
um gigantesco Lego. Faltava agora apenas achar os encaixes que só os meus defeitos
permitiam que ocorressem e só os defeitos dos outros também possibilitariam. A
união nunca é de partes perfeitas, lisinhas, sem ranhuras ou quebradinhos na
ponta. Não segui em frente apesar dos meus detratores, mas graças a eles. Minha
família era pobre, o que me ensinou a diferença entre o essencial e o supérfluo
e de como é preciso apreciar o essencial com rigor e o supérfluo com leveza.
Mamãe podava as árvores do quintal e dizia: "se eu tiro o que não precisa
terei sempre o que necessito.” Nunca esqueci.
Cresci com pessoas que não queriam me educar e,
graças a isso, aprendi muito. O lema de meu mundo juvenil era: “ninguém liga”.
Cabia a mim fazer o calçamento e definir as esquinas e aprender que, se o beco
não tem saída, ele não me ensina para onde devo ir, apenas onde não devo
voltar. Tornei-me adulto muito cedo. Saí de casa aos dezoito anos e, desde
então, sempre fui eu quem pagou as contas. Aprendi a não fazer dívidas e juntar
primeiro e comprar à vista depois. E gastar prodigamente o desconto que consigo
nessas transações. Aprendi também a não guardar os recursos como quem esconde,
mas como quem vela: dinheiro não pode provocar medo, mas é amigo da atenção.
Casei e descasei e tive um filho que tornou minha
relação para sempre, para além de mim e dela. Casei de novo e ganhei duas novas
filhas que vieram com a mudança. Papai e mamãe já estão perto dos 60 anos de
casados e defendem a família tradicional, torcendo os narizes para essas
modernidades. Sorrio feliz de não ter aprendido isso com eles. E abraço todos
os meus amores como a criança que abre o presente de Natal tão desejado. Pensei
que nunca viveria tanto e já passei bastante dos cinquenta e olho-me no espelho
e só me enxergo bem quando apago a luz. O que não reflete sou eu, pulando
amarelinha.
Trabalho com jovens e todos os anos eles têm a
mesma idade e, por isso, vou me ajustando, rejuvenescendo também, na linguagem,
nos gestos, na atenção. Olho para eles e dirijo-me a eles não como aquele que
sabe e que agora vai mostrar como é, mas como aquele que se desculpa por tudo o
que há e que busca parceria pra tentar melhorar um pouco do que sobrou. O jovem
é muito receptivo quando percebe que os mais velhos são apenas uns
desamparados, como a criança que quebrou, sem querer, o brinquedo que tanto ama.
Desse apoio em comum, muitas vezes nasce uma história nova que irriga caminhos.
E, dessa forma, vou apostando na eternidade.
Apresento esse currículo aos que quiserem empregar
um pouco de seu tempo no trabalho de me ler e compartilhar comigo suas histórias
de vida, como os vidrinhos coloridos do caleidoscópio. Candidatos a uma imagem
bonita, comum, passageira.
Daniel
Medeiros - doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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