Durante
muitos anos foi lugar-comum na retórica jurídica e política a apologia ao notável
espírito democrático, de pluralismo e de tolerância, de nossa Constituição
Cidadã, promulgada há exatos trinta anos. Nossa Carta Magna é mundialmente
reconhecida como uma das mais avançadas em termos de direitos fundamentais e de
participação popular e de representação da diversidade social. Seu admirável
legado cívico e republicano, todavia, parece estar sendo traído neste belicoso
momento em que vivemos, acentuado pelo radicalismo político e pela incerteza
quanto aos rumos institucionais.
Ironicamente, a data em que comemoramos suas
três décadas de vigência coincide com um tenebroso período de instabilidade:
certamente o período de mais conflitiva polarização político-ideológica desde a
redemocratização.
Preocupações
recrudescem quando sabemos que, neste cenário eleitoral, as duas campanhas que
se anunciam para o segundo turno presidencial insinuam propostas de elaboração
de uma nova Constituição.
Afinal,
por que é absurdo propor uma nova Constituição? Poderíamos mencionar o
oportunismo que há em atribuir os problemas do país – cuja base certamente
remonta à nossa cultura política e à nossa falta de ética e de comprometimento
cívico – à nossa Constituição, como se alterá-la fosse, em um passe de mágica,
resolver os dilemas do patrimonialismo que há séculos nos assombram. Mas não.
Neste momento é pertinente ressaltar as contradições propriamente jurídicas de
uma proposta de nova Constituinte. É preciso indagarmo-nos: para que serve uma
Constituição? Ora, o movimento do constitucionalismo emergiu justamente para
conter os ímpetos das maiorias políticas nos momentos de crise; para limitar a
ganância dos poderosos; para estabelecer ritos e procedimentos para a
elaboração das leis; e – o mais importante – para proteger os direitos das
minorias e os princípios elementares do Estado democrático de direito ameaçados
pelas avassaladoras paixões políticas.
A
vida política deve conformar-se ao que dita a Constituição, e não o contrário:
o substrato constitucional é nosso horizonte de princípios e valores, nosso compromisso
fundamental com a democracia e com a estabilidade institucional. O processo de
reforma constitucional não pode estar disponível ao bel-prazer dos
momentaneamente poderosos. Que estabilidade teríamos em tal contexto? A
Constituição funciona justamente como um limite – formal e material – às
deliberações e decisões dos agentes públicos. É a garantia de que as leis serão
aprovadas segundo procedimentos previamente estabelecidos e respeitarão os
direitos fundamentais, com destaque para as “cláusulas pétreas”. Mais
problemático ainda é pensar que uma nova Constituinte afastaria a possibilidade
de controle jurisdicional de constitucionalidade sobre essa reforma.
Mesmo
que por emenda constitucional, convocar uma nova Constituinte joga a
Constituição contra a própria Constituição, sob o pretexto de encontrar uma
solução para a crise política. É uma forma sub-reptícia de ignorar os
procedimentos de reforma constitucional e as cláusulas pétreas; é atentar
contra a rigidez e a supremacia constitucional. Tampouco este momento de grave
conturbação política e institucional apresenta-se como adequado para discutir
direitos fundamentais. Vivemos sob a angústia do radicalismo típico dos
momentos de polarização. Aventurar-se em uma reforma ampla seria um “cheque em
branco” para que se vulnerem princípios como o da igualdade, da liberdade, da
dignidade humana e do pluralismo político, tão arduamente conquistados após
décadas de autoritarismo estatal. Será este o momento mais prudente para
decidirmos o que queremos, enquanto comunidade democrática, para o futuro?
Não
há argumento razoável para a edição de uma nova Constituição. A atual já nos
provê de princípios e valores que possibilitam superar crises, na medida em que
sela, de maneira sólida, um pacto com as premissas do Estado democrático de
direito. Além disso, permite a reforma política com participação parlamentar e
popular, desde que respeitadas às regras do jogo democrático. Dizer o contrário
é mero oportunismo político ou retórica eleitoreira de má-fé para os mais
desavisados e incautos. Na data em que proliferam as comemorações dos 30 anos
da Constituição Cidadã, desejamos que a classe política e, com muito mais
razão, a sociedade brasileira não abandonem a maior conquista democrática de
nossa história. Seria um triste desfecho para uma narrativa de tantas lutas e
esperanças. Que o aniversário de nossa Lei Maior não coincida com o seu
réquiem!
Luís
Cláudio Chaves
Vice-presidente da OAB Nacional
Vice-presidente da OAB Nacional
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