sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Trinta anos da Constituição


 Durante muitos anos foi lugar-comum na retórica jurídica e política a apologia ao notável espírito democrático, de pluralismo e de tolerância, de nossa Constituição Cidadã, promulgada há exatos trinta anos. Nossa Carta Magna é mundialmente reconhecida como uma das mais avançadas em termos de direitos fundamentais e de participação popular e de representação da diversidade social. Seu admirável legado cívico e republicano, todavia, parece estar sendo traído neste belicoso momento em que vivemos, acentuado pelo radicalismo político e pela incerteza quanto aos rumos institucionais. 

Ironicamente, a data em que comemoramos suas três décadas de vigência coincide com um tenebroso período de instabilidade: certamente o período de mais conflitiva polarização político-ideológica desde a redemocratização.

Preocupações recrudescem quando sabemos que, neste cenário eleitoral, as duas campanhas que se anunciam para o segundo turno presidencial insinuam propostas de elaboração de uma nova Constituição. 

Afinal, por que é absurdo propor uma nova Constituição? Poderíamos mencionar o oportunismo que há em atribuir os problemas do país – cuja base certamente remonta à nossa cultura política e à nossa falta de ética e de comprometimento cívico – à nossa Constituição, como se alterá-la fosse, em um passe de mágica, resolver os dilemas do patrimonialismo que há séculos nos assombram. Mas não. Neste momento é pertinente ressaltar as contradições propriamente jurídicas de uma proposta de nova Constituinte. É preciso indagarmo-nos: para que serve uma Constituição? Ora, o movimento do constitucionalismo emergiu justamente para conter os ímpetos das maiorias políticas nos momentos de crise; para limitar a ganância dos poderosos; para estabelecer ritos e procedimentos para a elaboração das leis; e – o mais importante – para proteger os direitos das minorias e os princípios elementares do Estado democrático de direito ameaçados pelas avassaladoras paixões políticas.

A vida política deve conformar-se ao que dita a Constituição, e não o contrário: o substrato constitucional é nosso horizonte de princípios e valores, nosso compromisso fundamental com a democracia e com a estabilidade institucional. O processo de reforma constitucional não pode estar disponível ao bel-prazer dos momentaneamente poderosos. Que estabilidade teríamos em tal contexto? A Constituição funciona justamente como um limite – formal e material – às deliberações e decisões dos agentes públicos. É a garantia de que as leis serão aprovadas segundo procedimentos previamente estabelecidos e respeitarão os direitos fundamentais, com destaque para as “cláusulas pétreas”. Mais problemático ainda é pensar que uma nova Constituinte afastaria a possibilidade de controle jurisdicional de constitucionalidade sobre essa reforma.

Mesmo que por emenda constitucional, convocar uma nova Constituinte joga a Constituição contra a própria Constituição, sob o pretexto de encontrar uma solução para a crise política. É uma forma sub-reptícia de ignorar os procedimentos de reforma constitucional e as cláusulas pétreas; é atentar contra a rigidez e a supremacia constitucional. Tampouco este momento de grave conturbação política e institucional apresenta-se como adequado para discutir direitos fundamentais. Vivemos sob a angústia do radicalismo típico dos momentos de polarização. Aventurar-se em uma reforma ampla seria um “cheque em branco” para que se vulnerem princípios como o da igualdade, da liberdade, da dignidade humana e do pluralismo político, tão arduamente conquistados após décadas de autoritarismo estatal. Será este o momento mais prudente para decidirmos o que queremos, enquanto comunidade democrática, para o futuro?

Não há argumento razoável para a edição de uma nova Constituição. A atual já nos provê de princípios e valores que possibilitam superar crises, na medida em que sela, de maneira sólida, um pacto com as premissas do Estado democrático de direito. Além disso, permite a reforma política com participação parlamentar e popular, desde que respeitadas às regras do jogo democrático. Dizer o contrário é mero oportunismo político ou retórica eleitoreira de má-fé para os mais desavisados e incautos. Na data em que proliferam as comemorações dos 30 anos da Constituição Cidadã, desejamos que a classe política e, com muito mais razão, a sociedade brasileira não abandonem a maior conquista democrática de nossa história. Seria um triste desfecho para uma narrativa de tantas lutas e esperanças. Que o aniversário de nossa Lei Maior não coincida com o seu réquiem!






Luís Cláudio Chaves
Vice-presidente da OAB Nacional 


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