Moléstia de maior
sobrecarga médico-social entre as parasitoses humanas mata mais de quatro mil
pessoas por ano no Brasil. De 40 a 50% dos indivíduos infectados terão sequelas
graves, o que inclui ataque no coração, esôfago e intestino
Em 14 de
abril é celebrado o Dia Mundial da Doença de Chagas, data para dar visibilidade
a uma das doenças tropicais mais negligenciadas, priorizadas pela Organização
Mundial da Saúde (OMS). Segundo a World Heart Federation (Federação Mundial do Coração), de 6 a 7 milhões de indivíduos são
afetados em todo o globo; 12 mil morrem a cada ano; apenas 1 em cada 10 pacientes
são diagnosticados, e 75 milhões de pessoas que vivem na América Latina correm
o risco de contrair a enfermidade, que foi descoberta há mais de um século, mas
permaneceu amplamente ignorada.
A Federação
Internacional das Associações de Pessoas Atingidas pela Doença de Chagas
(FINDECHAGAS) ressaltou que, diante das dificuldades que a Covid-19 tem imposto
à humanidade, as pessoas afetadas por Chagas, assim como outras doenças
negligenciadas, têm se mostrado mais vulneráveis, por causa do estado de saúde
e pela exposição ao novo coronavírus. Além disso, os programas de atenção aos
serviços de saúde também reduziram sua capacidade de atender esses pacientes
devido aos esforços feitos em resposta à pandemia.
Embora
tanto no ano passado como neste a situação da Covid-19 não tenha facilitado a
visibilidade da real situação das pessoas atingidas por Chagas, é importante
destacar que a complexidade deste problema requer diferentes enfoques, além de
integrar sua prevenção, sua atenção, seu controle e sua vigilância às
atividades regulares dos sistemas de saúde.
“A
celebração do Dia Mundial da Doença de Chagas é um feito conquistado pelo
Brasil, com apoio importante da Fiocruz e que foi comemorado pela primeira vez
no ano passado. Infelizmente durante a pandemia se tornou muito difícil
realizar uma agenda para a data. Trata-se de um problema que pode ainda
acometer cerca de 1,9 milhão a 4,6 milhões de brasileiros, muitos deles não
diagnosticados, que podem cursar com insuficiência cardíaca e morte. Morrem
pouco mais de 4 mil pessoas no Brasil por ano por complicações da doença de
Chagas”, alerta o presidente do Departamento de Insuficiência Cardíaca (DEIC)
da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), Evandro Tinoco Mesquita.
A doença de
Chagas tem sido associada há muito tempo a populações rurais e vulneráveis e é
caracterizada pela pobreza e exclusão, no entanto essa negligência e estigma
social associado à infecção se apresentam como uma grande barreira para a
triagem, diagnóstico, tratamento e controle eficazes.
Assassino silencioso
Ela é
causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi e
propagada principalmente por insetos triatomíneos, ou pela ingestão de
alimentos contaminados. Se não for tratada, pode provocar problemas graves no
coração e no sistema digestivo. Se apresenta em duas fases: uma aguda, que pode
ou não ser sintomática, e outra crônica, manifestada de forma indeterminada,
cardíaca, digestiva ou cardiodigestiva.
A fase
aguda, que dura em média dois meses, é a única altura em que a doença de Chagas
pode ser diagnosticada; os sintomas são ligeiros ou ausentes. Posteriormente há
uma fase crônica assintomática, que pode acompanhar o indivíduo de 10 a 30
anos. Na fase clínica crônica, 1 em cada 3 três pessoas infectadas contraem
problemas cardíacos e do sistema digestivo, que podem provocar a morte.
Os sintomas
variam durante as duas fases. Na primeira, os pacientes podem apresentar febre
e alguns outros sinais de uma infecção aguda, como dor de cabeça, fraqueza,
inchaço nas pernas e no rosto.
“A doença
de Chagas tem mais de 120 anos de sua descoberta. Um único pesquisador, Carlos
Chagas, foi capaz de perceber a existência de uma enfermidade que não era rara
e acometia milhões de indivíduos; descobriu o agente transmissor e caracterizou
como ela evoluía e acometia o ser humano. Foi uma conquista da história da
medicina, mas que ainda existem lacunas do conhecimento”, afirma José Antonio
Marin-Neto, professor titular de Cardiologia da Universidade de São Paulo (USP)
em Ribeirão Preto e coordenador da nova diretriz sobre cardiopatia chagásica da
SBC, que deve ser publicada ainda em 2021.
Em mais de
um século, a patologia mudou radicalmente de representação social, se antes era
endêmica e confinada a regiões rurais e países em desenvolvimento, hoje evoluiu
e se tornou uma doença cosmopolita encontrada em quase todos os países de todos
os continentes. Com a disseminação, despertou-se grande interesse por avanços
no diagnóstico e no tratamento.
Prevalência e transmissão oral
Segundo
Marin-Neto, é possível que existam nos Estados Unidos cerca de 300 mil
indivíduos infectados por Chagas, um número significativo e que preocupa as
autoridades sanitárias locais. No Brasil, esse número salta para até três
milhões de doentes, e no mundo, estima-se que cinco a dez milhões de pessoas
estejam acometidas pela doença.
“Essa
estatística de prevalência é estimada. O principal mecanismo de transmissão é a
picada de um inseto que suga o sangue do hospedeiro e vai infectar outras
pessoas. Uma escala que não é controlada. Houve uma erradicação de algumas
espécies de insetos hematófagos e foi contido parcialmente esse tipo de
contaminação. Mas causas antrópicas, como o desmatamento na Amazônia, fazem com
que outros insetos infectados entrem em contato com o homem. O desflorestamento
é muito nocivo e tem esse tipo de efeito colateral também na doença de Chagas”,
diz Marin-Neto.
Atualmente,
ocorrem pequenos surtos da doença, especialmente quando indivíduos ingerem
alimentos preparados em condições precárias, como açaí e caldo de cana, e acabam
levando para dentro do organismo fezes do inseto contendo o Trypanosoma
cruzi. A transmissão oral, quando o agente causador
contamina o indivíduo através da boca e do esôfago, tem uma carga elevada de
parasitos e torna-se mais grave, ou seja, trata-se de um aspecto que evidencia
como a doença e suas vias de transmissão mudaram com o passar dos anos.
“Esse ano
fazemos um alerta para transmissão oral da doença de Chagas, principalmente
pela ingestão de açaí. Existem técnicas hoje que evitam a contaminação, o
chamado branqueamento do açaí, mas a transmissão oral ainda é um problema que
vem sendo amplamente pesquisado por colegas, sobretudo cardiologistas e
infectologistas da região norte do Brasil. Estamos diante de um grave problema
de saúde pública”, enfatiza Mesquita.
O
branqueamento dos frutos foi introduzido como controle ao protozoário Trypanosoma
cruzi, que pode estar presente em fragmentos de
barbeiros contaminados remanescentes da etapa de peneiramento, ou em suas fezes
aderidas aos frutos. Nesta etapa, os frutos de açaí devem ser submetidos a
tratamento térmico com água em temperatura de 80°C durante dez segundos e, logo
após, resfriado em temperatura ambiente. Esse procedimento pode ser realizado
de várias formas, assim o batedor de açaí deve encontrar a melhor opção para
sua realidade, levando sempre em consideração a temperatura a ser alcançada e o
tempo de imersão para efetividade da prática.
Ausência de diagnóstico
De acordo
com o coordenador da nova diretriz sobre cardiopatia chagásica da SBC, um dos
principais problemas relacionados à doença de Chagas é que muitas pessoas
infectadas não têm diagnóstico. Com poucos sintomas e sem um rastreamento
específico, é uma questão de saúde pública, especialmente na América Latina,
mas não somente nela.
A doença de
Chagas constitui a terceira entidade nosológica com maior expressão
populacional de cunho global entre as moléstias infecciosas tropicais, após a
malária e a esquistossomose. E, especificamente no hemisfério ocidental,
representa a moléstia de maior sobrecarga médico-social entre as parasitoses
humanas, como consequência direta de sua elevada morbimortalidade. Assim, é
responsável por sete vezes mais anos de vida perdidos, ajustados para os
inúmeros agravos incapacitantes de saúde sofridos antes da morte, em comparação
com a malária.
Por sua
característica de antropozoonose, dispondo de amplo reservatório de animais
infectados, além do ser humano – e de extensa gama de vetores –, é virtualmente
impossível erradicá-la completamente.
“Quando o
indivíduo é contaminado ele passa por uma fase aguda, de poucas semanas e essa
doença se auto limita. A pessoa pode não sentir nada ou sentir como se fosse
uma pequena infecção, com febre e mal-estar. Posteriormente, ela passa à
chamada fase crônica, quase sempre sem ter a fase anterior diagnosticada. Esses
pacientes, após duas a quatro décadas, terão os problemas mais sérios, o que
inclui ataque no coração, esôfago e intestino, entre outras agressões. No
coração é onde existe o maior problema em termos de números: de 40% a 50% dos
indivíduos que tiveram doença de Chagas terão sequelas mais graves”, fala
Marin-Neto.
Ataque ao coração
Isso se dá
porque a enfermidade provoca uma inflamação, que mata muitas das células
cardíacas, responsáveis pela contração muscular, ou sejam, que fazem o coração
trabalhar como uma bomba de sangue. Essas células ficam enfraquecidas e o
músculo cardíaco comprometido, o que leva a trombose em vários pontos do
organismo, aumentando a chance de o paciente vir a óbito.
Pelo avanço
da doença ao redor do globo, é recente o interesse pelo desenvolvimento de
novos fármacos para o tratamento. Hoje só existem dois medicamentos que são
considerados parcialmente efetivos contra o Trypanosoma
cruzi e ambos são herança da década de 1960. Houve
significativas tentativas recentes de pesquisas para consolidar novos recursos
terapêuticos, que se demonstraram inferiores aos padrões daqueles dois remédios
antigos.
O
transplante de coração é um recurso final utilizado somente quando o órgão se
torna absolutamente incapaz de funcionar. Para atacar o agente infeccioso não
existem medicamentos, logo não se consegue erradicá-lo, por isso, na maioria
dos casos, o protozoário consegue infiltrar o coração, lesionando as fibras
responsáveis pelo movimento de contração e pela geração e condução da
eletricidade cardíaca, destroçando o órgão.
Embora os
resultados dos transplantes sejam positivos, isso ainda é restrito a
determinados centros, isto é, são poucos os indivíduos que podem se beneficiar
desse procedimento.
Nova diretriz
A descrição
do ciclo evolutivo da doença de Chagas pelo cientista brasileiro Carlos Chagas,
completou 100 anos em 2009 e para celebrar a data SBC elaborou uma diretriz
acerca do diagnóstico e tratamento da cardiopatia chagásica, publicada em 2011
com o apoio das Sociedades Sul-Americana e Interamericana de Cardiologia.
A I
Diretriz Latino-Americana para o Diagnóstico e Tratamento da Cardiopatia
Chagásica foi produzida a partir de um corpo editorial formado por
cardiologistas brasileiros e da América Latina.
“De 2011
para cá tem-se registrado múltiplos avanços em diagnósticos, prognóstico e na
compreensão do estrago que é feito no coração pela doença de Chagas,
principalmente passamos a compreender melhor os mecanismos e aplicar com mais
eficiência o indicador sobre qual vai ser o destino daquele paciente. Em dez
anos, houve avanços que fazem necessária a confecção de uma nova diretriz,
novamente sob responsabilidade da SBC”, explica Marin-Neto. O documento deve
ser disponibilizado até o fim deste ano.
O novo
estudo objetiva avançar de maneira sistemática em questões de diagnóstico, uma
vez que novos recursos metodológicos de imagem permitem enxergar com nitidez o
coração. A ressonância magnética, por exemplo, permite desvendar se houve ou não
destruição das células normais do músculo cardíaco e com isso, se houve
substituição por um componente de tecido fibrótico. Essa fibrose não tem
capacidade de contração, mas substitui o elemento que foi aniquilado pelo
ataque inflamatório. A fibrose é um indicador de que o indivíduo pode morrer
subitamente.
“Queremos
com a nova diretriz também nortear o uso de métodos que sejam capazes de evitar
desfechos súbitos. De 65% a 70% dos casos de óbito por doença de Chagas ocorrem
por evento súbito, inesperado e muitas vezes sem aviso. Isso pode ser visto
primeiro do ponto de vista diagnóstico e também podemos fazer um tratamento
medicamentoso para evitar essa morte súbita, com a possibilidade de implantar
um dispositivo que a controla, um cardiodesfibrilador implantável, que percebe
quando o coração está entrando em ritmo que pode ser fatal, revertendo o
quadro”, antecipa o cardiologista.
Para
Marin-Neto, a maior dificuldade para o desenvolvimento de uma nova diretriz
está na falta de literatura, ou seja, estudos que sejam específicos para a
doença de Chagas. O que se faz muito ainda é extrapolar conceitos e tratamentos
que sejam aplicáveis a pacientes com doenças semelhantes.
Covid-19
Em tempos
de pandemia, Marin-Neto alerta que o paciente com doença de Chagas tem uma
comorbidade indiscutível que estimula um estado inflamatório. Se o indivíduo
infectado pelo Trypanosoma cruzi for
acometido pela Covid-19, irá ocorrer um duplo ataque inflamatório ao organismo.
Além disso, assim como a doença de Chagas, a Covid tem tendência a causar
problemas de trombose em vários pontos de circulação.
“Esse
paciente com certeza é vulnerável, tem uma tendencia a evoluir pior que se ele
não tivesse comorbidade. Não há dados claros que demostrem, mas há evidências
plausíveis para essa teoria”, finaliza o cardiologista.
SOCIEDADE
BRASILEIRA DE CARDIOLOGIA