Mais de 80% dos acolhidos, em sua maioria negros, permaneceram mais de cinco anos em espaços de acolhimento iStock |
Pesquisa da Aldeias Infantis SOS indica que jovens pretos e pardos são a maioria entre as crianças e adolescentes acolhidas devido à perda de cuidado parental
No mês em que se celebra o Dia da Consciência Negra
(20), data criada em 2011 e que, a partir deste ano, torna-se feriado nacional,
a sociedade tem a oportunidade de refletir sobre o futuro de milhares de
crianças, adolescentes e jovens negros que foram afastados de suas famílias,
por ordem judicial, e mantidos sob os cuidados de terceiros para se
desenvolverem como cidadãos plenos de direito.
Quando se leva em consideração o quesito cor de
pele, esses jovens ainda são uma imensa maioria entre todos aqueles que foram
encaminhados para serviços de acolhimento e proteção de crianças e adolescentes
com a ruptura do cuidado parental, após decisão judicial.
De acordo com a Pesquisa Nacional Vozes
(in)escutadas e rompimento de vínculos, publicada em junho de 2023
pela Aldeias Infantis SOS,
organização que lidera o maior movimento de cuidado do mundo, 80,6% dos jovens
egressos dos serviços de acolhimento em todo o país se autodeclararam negros (de
cor preta e parda).
A pesquisa também revelou que o tempo de
permanência desses jovens em serviços de acolhimento, como abrigos e casas
lares, é maior na comparação com brancos. Segundo o estudo, mais de 80% dos
acolhidos permaneceram mais de cinco anos nesses espaços, sugerindo um atraso
no processo de adoção subsequente ao acolhimento.
Para reforçar essa constatação, os pesquisadores
resgataram um dado oficial de 2001 mostrando que o perfil de jovem negro era
menos considerado para adoção, isto é, menos “adotável”, contribuindo para o
fenômeno da adoção tardia.
A pesquisa da Aldeias Infantis SOS ainda trouxe
dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) que deram conta de que, das 31.897 crianças e adolescentes
registradas no SNA no mês de referência (abril de 2023), relacionadas no
sistema de cor do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e
referidas enquanto etnias, 50,4% eram de etnia não informada, 31,1% de cor
parda e preta (negras) e 15,9% de cor branca.
Nesse sentido, infere o estudo, ainda que cerca de
50% não tenham informado sua cor/raça/etnia, as pessoas negras representariam
praticamente o dobro das que são informadas como de cor branca.
“Estamos falando de um ciclo de desassistência
prolongado às famílias pobres, normalmente sem suporte adequado das políticas
públicas, especialmente de habitação, educação e saúde, que resulta, em uma
série de violações de direitos, que recaem sobre mulheres mães e crianças e
adolescentes, implicando no descumprimento do direito à convivência familiar e
à convivência comunitária”, afirma Michele Mansor, gerente nacional de
Desenvolvimento Programático da Aldeias Infantis SOS.
A porta-voz da Organização diz que o feriado do dia
20 de novembro, data que remete à morte de Zumbi dos Palmares, símbolo da luta
antiescravista no país, deve lembrar que a sociedade brasileira contraiu uma
dúvida histórica com seu próprio povo, e que a desigualdade racial explica a
situação de jovens pretos e pardos afastados de suas famílias e, em parte dos
casos, colocados na fila de adoção.
“O principal motivo apontado para justificar o
afastamento de jovens do seu convívio familiar é a negligência, que comporta,
sobretudo, casos em que as famílias são incapazes de prover cuidado para seus
filhos. A maioria dos casos decorrem da vulnerabilidade social, com altos
índices de pobreza e que atingem mais duramente as etnias pretas ou pardas,
segundo as estatísticas. Contudo a negligência não é entendida como uma falta
também da sociedade e do Estado, mas como apenas da família, fazendo recair uma
indevida e injusta culpabilização sobre elas”, explica a especialista.
Para sustentar sua afirmação, ela cita a pesquisa a
Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgada pelo IBGE no final
de 2022, que mostra que a taxa de desemprego entre os negros é cerca de 5% mais
alta, em comparação à população branca, a informalidade chega a 15% de
diferença e o acesso a serviços básicos, como saúde e educação, apresenta
desigualdades significativas.
Cuidado e acolhimento
Nesse cenário de racismo estrutural e desigualdades
sociais, a Aldeias Infantis SOS se destaca no país como uma das instituições de
referência na hora de prover serviços de acolhimento de jovens que perderam o
cuidado parental, além de atuar no sentido de evitar a ruptura de vínculos
familiares, por meio de ações preventivas de fortalecimento familiar e
comunitário, e contribuir com a promoção de melhorias em políticas públicas
para que nenhuma criança cresça sozinha.
Fundada em 1949, na Áustria, a Organização nasceu
com o compromisso de assegurar a crianças e adolescentes a condição de não
precisarem viver nas ruas e nos grandes abrigos. A aposta generosa em um
cuidado com feições familiares, possibilitada pela moradia em Casas Lares com
uma pessoa adulta cuidadora, a Mãe Social, que é referência de educação e
afeto, fez com que a Aldeias Infantis SOS se expandisse pelo mundo.
Atualmente, a Organização está presente em mais de
130 países e territórios. Somente no Brasil, atua há 57 anos e segue ativa em
11 Estados e no Distrito Federal, de Norte a Sul do país, onde mantém, em 30
localidades, mais de 80 projetos de acolhimento, fortalecimento familiar, apoio
às juventudes e ações humanitárias.
“O impacto social do trabalho da Aldeias Infantis
SOS ajuda a mitigar um dos efeitos mais danosos do racismo e da desigualdade,
que é o abandono de menores afastados de suas famílias e comunidades.
Acreditamos que, por meio de um trabalho solidário e, sobretudo, afetivo,
podemos e devemos ajudar a conduzir essas pessoas na travessia para a vida
adulta, para que se tornem cidadãos de direito e tenham um desenvolvimento
completo como seres humanos”, conclui Mansor.
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