Se, durante à noite, a cidade vista do alto pode parecer deslumbrante, de dia nem mesmo o distanciamento é capaz de esconder seus graves problemas sociais e urbanos
Pelo mundo todo, mirantes e
terraços costumam atrair visitantes em busca de uma vista panorâmica das
cidades. Em São Paulo, uma cidade tão desigual e repleta de contradições, a
vista de cima talvez tenha um simbolismo particular: do alto, especialmente durante
à noite, em meio às luzes dos carros, dos postes, das fachadas e dos
apartamentos, poluição, degradação, desigualdade, violência; o cinza, o
abandono, o descaso e o barulho parecem, simplesmente, desaparecer.
“Em São Paulo, as luzes
escondem ao invés de revelar”, lembro de ter pensado na primeira vez em que fui
ao charmoso bar do Terraço Itália, muitos anos atrás. “Na capital,
a poluição e o excesso de luzes escondem as estrelas; uma espécie de céu
iluminado, contudo, se revela quando olhamos a cidade de cima; e podemos,
então, voltar a sonhar”, acho que li algo mais ou menos assim em algum lugar
certa vez.
Com dois filhos pequenos,
diminuíram um pouco as possibilidades de explorar novos destinos ultimamente.
Por outro lado, minha companheira e eu temos aproveitado o momento para
“turistar” mais por nossa própria cidade, que, a despeito de todos os seus
muitos defeitos, ainda consegue ser interessante e surpreendente.
Não sei dizer se foi mera
coincidência ou não, mas boa parte dos lugares a que fomos recentemente são
mirantes ou terraços que proporcionam vistas panorâmicas da cidade.
Em uma segunda-feira na qual
tiramos folga do trabalho – e das crianças –, por exemplo, resolvemos almoçar
no Esther Rooftop, restaurante francês dos chefs Olivier Anquier e
Benoit Mathurin que ocupa a cobertura do icônico Edifício Esther – da década de
1930, um dos marcos do modernismo e da verticalização da capital.
A primeira surpresa, contudo,
não veio do alto, mas de baixo: ao sair do metrô e entrar no edifício, sentimos
uma leve vibração no piso acompanhada por uma música eletrônica abafada. Com um
tom de ironia, perguntei ao recepcionista se havia uma academia por ali. “Não,
é uma balada mesmo. Fica no subsolo. Funciona das cinco da manhã às duas da
tarde”.
No caminho de elevador até o
11º andar, devo ter envelhecido pelo menos uns dez anos. Enquanto, ao meio-dia,
eu já me preparava para almoçar, ali embaixo, em plena segunda-feira, havia
gente que nem tinha ido dormir ainda, dançando ao som de música eletrônica sem
saber ao certo se já era dia, estendendo ao máximo a ilusão da noite. São Paulo
pode ser mesmo surpreendente – ao menos para um tiozinho como eu.
A cobertura do Esther
proporciona uma linda vista do verde da Praça da República e do belo edifício
Caetano de Campos, sede da Secretaria Estadual de Educação. “Como não estamos
tão no alto, não é uma vista que desumaniza a cidade”, comentou o próprio
Olivier ao passar na nossa mesa para nos cumprimentar. De fato, ao contrário da
vista do vizinho Terraço Itália, por exemplo, ali ainda era possível observar
as pessoas caminhando, o dia a dia da metrópole, seus encantos e,
principalmente, suas mazelas, como o grande número de moradores e rua.
Mesmo quando observamos a
cidade mais do alto, ao menos durante o dia, porém, seus problemas não
desaparecem completamente, conforme poderíamos esperar ou desejar.
Pouco tempo depois do almoço no
Esther, fomos com as crianças ao Farol Santander para visitar
uma exposição imersiva do teamLab. É claro que não deixaríamos de aproveitar o
passeio para ver a cidade de cima.
Inspirado no Empire State
Building de Nova Iorque, o 4º edifício mais alto de São Paulo (abaixo apenas
dos recém-inaugurados Platina 220 e Figueiras Altos do Tatuapé, e do também
icônico Mirante do Vale) proporciona uma vista 360º do impressionante mar cinza
de prédios que é o centro expandido da capital paulista.
Dali dá para ver o próprio
Mirante do Vale, os prédios da Avenida Paulista, a Catedral da Sé, o Edifício
Martinelli – um dos primeiros arranha-céus do país, da década de 20 do século
passado –; mas não há como ficar indiferente, por exemplo, ao centenário Parque
Dom Pedro, esquartejado pelas obras viárias, ou ao Expresso Tiradentes, uma
estrutura amarela medonha que se destaca na paisagem e fica sobre a deprimente
Avenida do Estado e o deprimido Rio Tamanduateí.
O sistema de transporte,
apresentado em 1995 como Fura-Fila, foi inaugurado apenas em 2007, a um custo
de mais de 1 bilhão de reais em valores de hoje; e, ainda hoje, continua
subutilizado, transportando bem menos passageiros do que outros corredores de
ônibus. Uma ode ao desperdício de dinheiro público e à degradação da paisagem
urbana!
Habituados ao centro de São
Paulo, em outro momento de folga escolhemos passar o dia no Hilton
Morumbi, que fica no Brooklin (?!), uma área da cidade até então pouco
explorada por nós. A piscina na cobertura do hotel proporciona uma ótima vista
da Ponte Estaiada, um dos mais recentes cartões-postais da capital. Com o
projeto do Novo Rio Pinheiros, além da despoluição do rio, foi instalado ali um
mirante, que permite ver a ponte mais de perto e com calma.
Do alto do Hilton, bem em
frente – a poucos metros do mirante, portanto –, fiquei me perguntando se seria
possível chegar ali a pé... Pois é, em um lugar onde predomina até hoje a
lógica rodoviarista, os rios sempre foram entendidos mais como obstáculos a
serem superados do que como partes integrantes e indispensáveis da cidade.
Por mais que o Rio Pinheiros
esteja sendo revitalizado e tenha ganhado ciclovias e um parque (palmas!), em
suas margens ainda está nada mais, nada menos, do que a Marginal Pinheiros, com
suas muitas faixas para veículos trafegarem em alta velocidade, o que
praticamente inviabiliza o acesso da população a pé ao parque e ao mirante.
Problema semelhante temos no
acesso ao Parque do Ibirapuera. Depois de uma manhã lendo, estirados no gramado
à beira do lago, resolvemos almoçar no Vista Restaurante, na
cobertura do Museu de Arte Contemporânea – um lindo edifício, parte do complexo
arquitetônico criado ali pelo Niemeyer na década de 1950.
Vamos a pé? Nem pensar, pois a
fome já apertava e, do ponto em que estávamos no parque, teríamos que andar um
tanto até chegar à passarela que permite atravessar a movimentada Avenida Pedro
Álvares Cabral. Mesmo de carro, contudo, foi preciso dar uma bela volta...
Do alto do Museu, as causas da
nossa dificuldade ficaram mais evidentes: se, em um primeiro momento, temos uma
vista deslumbrante do Obelisco e do verde do Ibirapuera, à medida que nos
aproximamos do guarda-corpo as vias expressas que circundam o parque vão se
revelando, deixando claro que o espaço ali não foi pensado para as pessoas, mas
para os carros. Um padrão, quase que uma regra, na capital paulista...
Por fim, no início de abril, no
meu aniversário de 41 anos, fui surpreendido por uma noite no Andar 41 –
minha companheira jura que foi mera coincidência –, hotel no 41º andar do
Edifício Mirante do Vale. Foi um presente incrível, uma experiência inusitada e
muito interessante.
Depois de atravessar à noite um
centro da cidade abandonado, triste, deprimente, perigoso, com ruas tomadas por
usuários de crack, chegamos a uma portaria bem simples, seguida de uma galeria
decadente com poucos comércios – todos fechados naquele horário –, entre os
quais uma curiosa loja de perucas.
Um elevador também bastante
simplório nos levou até o 41º andar, que parecia apenas mais um andar sem graça
de um enfadonho prédio de escritórios qualquer no centro. Ao abrirmos a porta,
porém, como em um labirinto místico fomos surpreendidos e automaticamente
transportados para um cenário de sonhos, repleto de plantas artificiais,
balanços, luzes, balões, um carrinho de pipoca (?!) e uma música ambiente
deliciosa.
No quarto com iluminação
indireta, no melhor estilo “De olhos bem fechados” do Kubrick, um janelão
piso-teto me proporcionou a vista mais deslumbrante que já tive da cidade, com
o Vale do Anhangabaú vazio, muito bem iluminado, cercado de prédios sombrios,
as muitas pequenas luzes amareladas dos apartamentos da cidade ao fundo, as
pequenas luzes e o neon do nosso próprio quarto, as luzes coloridas do Farol
Santander, do Edifício Martinelli, do Edifício Matarazzo (onde fica a
Prefeitura), do Viaduto do Chá e do Shopping Light, iluminados à noite, o
Viaduto Santa Ifigênia, todos ali perto, mudando de cor a todo momento, tudo
criando uma inebriante atmosfera de realismo mágico...
Ao amanhecer, porém, a
realidade voltou a dar as caras e uma cidade cinza, suja, feia, poluída, cheia
de problemas sociais e urbanos, com um centro histórico abandonado, repleto de
prédios degradados, voltou a se revelar.
E o Vale do Anhangabaú, apesar
da reforma recente de 120 milhões de reais, continuava praticamente tão vazio
naquela manhã quanto na noite anterior. A imagem, porém, nada mais tinha de
onírica, mágica ou surpreendente; era apenas a mesma São Paulo de sempre, com
suas vias cheias de carros; a mesma cidade rica e desigual, cinza, suja,
poluída, com o passado abandonado dando lugar a um sonho de futuro que não
chega; ou que se revela apenas como um eterno presente deprimente e distópico.
Passada a noite, apagadas as
luzes, nem de longe, nem de lá de cima de um dos mais altos arranha-céus de São
Paulo, era possível se esconder dos muitos problemas da cidade; problemas que
parecem simplesmente não ter solução, a despeito dos enormes investimentos
públicos e privados realizados ao longo dos anos.
“O melhor lugar para ver São
Paulo de cima não é onde, mas quando”, concluí.
Foi então que um verso de “Não
existe amor em SP”, do Criolo, me veio à mente e ganhou um novo significado
para mim.
Aqui ninguém vai pro
céu!
Para ver
São Paulo de cima, se encantar e se deprimir:
- Terraço
Itália
Avenida Ipiranga, 344, 41º
andar - República
- Esther
Rooftop
Rua Basílio da Gama, 29, 11º
andar – República
- Farol
Santander
Rua João Brícola, 24 – Centro
Histórico de São Paulo
- Hilton
São Paulo Morumbi
Avenida das Nações Unidas,
12.901 – Brooklin
- Vista
Restaurante Ibirapuera
Cobertura do MAC USP – Avenida
Pedro Álvares Cabral, 1.301, 8º andar – Vila Mariana
- Andar 41
Edifício Mirante do Vale, 41º
andar – Praça Pedro Lessa, 110 – Centro Histórico de São Paulo
Vitor França - Economista pela FEA-USP e mestre em economia pela FGV-SP
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