Os últimos 12 meses reservaram muitas novidades
jurídicas para o mercado imobiliário. Como nos melhores seriados, parece que
cada temporada reserva muita emoção e pega o público de surpresa. Os
personagens são bem conhecidos: compradores, construtoras e condôminos. Entre
as mudanças, novas leis procuraram dar maior segurança a vários modelos de
negócio. É o caso da regulamentação do condomínio de lotes e as regras para a
multipropriedade (situação em que várias pessoas são donas de um imóvel, mas
cada uma com direito a utilizá-lo apenas por um período de tempo no ano).
Além disso, a Lei 13.786/2018, apelidada de “Lei do
Distrato”, tratou de estabelecer regras para a desistência da compra pelo
adquirente, e as consequências quando o atraso for da construtora. Nos
tribunais há também bastante movimentação. No Recurso Especial 1.733.560, o
Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou que, na troca de dois imóveis de
igual valor (contrato de permuta), não é devido Imposto de Renda.
A maior novidade, no entanto, foram duas decisões
tomadas pelo STJ, em sede de "recurso repetitivo", ou seja, julgando
simultaneamente, por amostragem, milhares de casos e definindo uma diretriz
para os casos futuros, ou seja, fixando uma tese jurídica. Após a realização
inclusive de audiências públicas, foram julgados dois temas sobre o atraso na
entrega do imóvel pela construtora e fixadas duas teses. A 970 diz que “a
cláusula penal moratória tem a finalidade de indenizar pelo adimplemento tardio
da obrigação e, em regra, estabelecido em valor equivalente ao locativo, afasta
sua cumulação com lucros cessantes”. A tese 971 afirma que “no contrato de
adesão firmado entre o comprador e a construtora/incorporadora, havendo
previsão de cláusula penal apenas para o inadimplemento do adquirente, deverá
ela ser considerada para a fixação da indenização pelo inadimplemento do
vendedor. As obrigações heterogêneas (obrigações de fazer e de dar) serão
convertidas em dinheiro, por arbitramento judicial”.
Traduzindo o juridiquês, o tema 970 diz que, em
caso descumprimento do prazo na entrega de imóveis, em contratos em que houver
multa fixada para esta situação, a princípio não será possível cobrar, além da
multa por atraso, uma indenização pelo mesmo motivo (por exemplo, equivalente
ao aluguel que deixou de receber). O tema foi muito debatido entre os ministros
e a decisão não foi unânime. Em especial, foi salientado que há uma
diferenciação técnica entre a multa (cujo caráter é punitivo) e a reparação
pela indisponibilidade do bem (cujo caráter é reparatório). Tanto são
diferentes que a multa que é paga porque alguém atrasa um boleto é devida mesmo
sem que o credor precise provar dano. No entanto, para esta situação específica
a corte considerou que multa e indenização, de modo geral, tornaram-se equivalentes.
Não fica claro se apenas multas baseadas em
“equivalente locativo”, como diz a tese – ou seja, que levam em conta o valor
do aluguel – é que seguirão esta regra. Igualmente, sob uma ótica mais técnica,
afirmar que multa tem caráter de indenização é um precedente no mínimo delicado
e pode afetar contratos das mais diversas áreas. Espera-se que futuras decisões
solucionem a possível confusão de institutos jurídicos; do contrário, corre-se
o risco de criar muito mais litígios que soluções. Além disso, ao se definir
que não se pode pleitear multa e indenização ao mesmo tempo, será preciso
esclarecer se o comprador poderá optar entre um e outro, o que não ficou
totalmente claro, mesmo porque, no Direito brasileiro, com raríssimas exceções,
não se admite limitação do valor de reparação de danos em relações de consumo.
O tema 971 procurou lidar com o fato de que os
contratos de compra e venda muitas vezes estipulam multas apenas em favor da
construtora, sem que haja uma previsão similar para a situação em que o
descumprimento ocorre pela construtora. Admitiu-se que se use a multa da
construtora como parâmetro em favor do comprador, sem explicar exatamente o que
isso significa.
Mesmo após ter adiado o julgamento para melhorar a
linguagem empregada, o STJ não chegou a uma redação suficientemente clara
quanto ao modo de aplicação da tese consagrada no julgamento. A simples
aplicação de uma multa igual para situações diferentes não funciona. Assim, a
mesma multa de 1% pode ser justa para o atraso no pagamento de uma prestação em
dinheiro devida pelo comprador, mas questionável em relação à construtora, cuja
prestação é o valor total do imóvel.
Em outros termos, a premissa é boa, mas a prática
pode ser mais complicada. À primeira vista, não parece razoável que o comprador
pague uma multa quando atrasa, mas que inexista multa quanto o atraso é da
construtora. Por outro lado, a possibilidade de adotar a mesma multa para as
duas situações não necessariamente é a melhor solução, como aliás o próprio STJ
sinalizou no julgamento. Basta lembrar que o Tribunal de Justiça do estado de
São Paulo tinha uma súmula prevendo a impossibilidade da inversão da multa.
Por fim, é preciso observar que os julgamentos dos
temas 970 e 971 não levaram em conta a Lei 13.786/2018, que estabeleceu muitas
novidades em caso de desfazimento da compra e venda. Esse cenário, em que a
legislação mais recente não foi considerada, deixa uma grande dúvida sobre como
serão interpretados os contratos celebrados na vigência desta nova lei.
Gabriel Schulman - doutor em Direito, é advogado e
coordenador da Pós-Graduação em Direito Imobiliário da Universidade Positivo.
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