O Supremo Tribunal Federal definiu válida a
aplicação do prazo de oito anos de inelegibilidade para as pessoas que foram condenadas
por abuso de poder econômico ou político, pela Justiça Eleitoral, em período
anterior à existência da Lei da Ficha Limpa (LC n.º 135/2010). Na prática, o
judiciário retroage os efeitos da regra para data pretérita à existência da lei
com o objetivo de afastar da vida pública aqueles que foram condenados. Por um
lado, a decisão se mostra positiva na pretensão de moralizar o espaço público,
por outro, cria mais uma exceção casuística ao ordenamento jurídico. Esse
quadro merece uma atenção profunda da sociedade e demonstra a necessidade do
retorno dos magistrados aos clássicos do direito.
Historicamente, construímos uma série de mecanismo
jurídicos para proteger os cidadãos do poder absoluto do estamento estatal: o
devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, a presunção de
inocência, a irretroatividade das normas e a condenação com base em tipificação
expressamente descrita na lei. Todos foram importantes avanços da sociedade
contra o arbítrio do investigador, do acusador e do julgador do Estado. Assim,
todo e qualquer indício de ilegalidade deve ser processado nos marcos
constitucionalmente definidos e, se comprovada a violação da lei, o réu será
condenado por uma pena já definida na legislação. Nesse sentido, os princípios
e as regras devem ser a métrica para atuação do sistema de justiça e a garantia
da nossa liberdade.
Contudo, esses valores democráticos e republicanos
têm passado ao largo das instituições políticas brasileiras. O executivo e o
legislativo estão em uma profunda crise de legitimidade, tanto pelas decisões
políticas tomadas quanto pelos crimes cometidos por muitos mandatários que
ainda estão ocupando cargos públicos. E o judiciário? Além de não abrir a sua caixa
preta em relação aos crimes cometidos por magistrados, o STF aprofunda a crise
decidindo contra texto expresso da Constituição Federal ao permitir a
retroatividade da Lei da Ficha Limpa.
A força normativa da Constituição Federal só pode
ser materializada se a sua guardiã – a Suprema Corte – tomar decisões com base
no texto expresso e sem ativismos que contrariem a legislação existente.
Afastamento de senador, escuta de presidente da república por juiz de primeiro
grau, ensino religioso em escola pública, proibição de peça de teatro e
retroatividade dos efeitos de lei são exemplos de decisões opostas ao texto
constitucional e que geram uma insegurança para toda sociedade. Essas exceções
casuísticas abrem precedentes perigosos para o presente e chamam para o poder
judiciário uma competência de produção de normas que não está no seu âmbito de
atuação.
Em vez de esperar por “salvadores de togas”, a
sociedade deve pressionar as instituições para que atuem dentro dos marcos
constitucionais. Do contrário, permitiremos que entendimentos sem base
constitucional sejam aplicados contra qualquer cidadão em um processo judicial
sob a justificativa do interesse público. Em pleno ano de 2017, estaremos
abrindo mão de conquistas democráticas e republicanas contra o abuso de poder
do estado.
Não podemos ainda esquecer das milhares de ações
que tramitam no poder judiciário e que podem ser decididas a partir do que os
magistrados têm por convicção sob fundamentos de ordem moral alheios ao que
consta no ordenamento. Além disso, o processo judicial não pode ser visto como
um reality show onde o resultado é guiado por índices de
popularidade. Há casos em que a população exigiu uma condenação, medidas
judiciais cinematográficas foram tomadas e, posteriormente, verificou-se que o
réu era inocente. O processo deve ser um mecanismo orientado por uma série de
normas que garantam a segurança e a previsibilidade do caminho a ser
percorrido, independentemente do resultado final a ser apresentado na
sentença.
O apoio gradativo da sociedade às decisões do
judiciário que contrariam texto expresso da Constituição Federal permite que o
país inicie uma viagem noturna, sem carta de navegação, em meio à neblina e em
um mar agitado. Se o momento apresenta as condições para a tempestade perfeita,
o posicionamento da sociedade deveria ser no sentido de exigir que o judiciário
– no exercício dos freios e contrapesos – considere a Constituição Federal como
uma carta de navegação com força normativa para guiar o país na consolidação do
Estado Democrático de Direito.
Observar as regras clássicas do direito de forma
universal sem criar exceções que corroem a Constituição Federal é a perfeita
materialização da concepção jurídica “a lei é para todos” – inclusive para o
judiciário.
Eduardo Faria Silva - doutor
em Direito, é coordenador da Pós-Graduação de Direito Constitucional e
Democracia da Universidade Positivo (UP) e da Graduação em Direito
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