Por uma nonada, uma maçã, a humanidade paga até hoje.
Claro que é representação simbólica de uma vicissitude do criacionismo, mas não
elucida o desvalor presente na pena perpétua, devida a uma futilidade, a que
foi condenada. Expulsos do paraíso para o cruel deserto que os esperava, a
julgar pelos costumes de hoje, Adão pôs a culpa em Eva. Homens e mulheres se
mataram, porém a história bíblica só fala de Caim e Abel. Não que tenha sido um
episódio elogiável, mas a história começava tendo como perspectiva só um lado
de ambas as espécies componentes do gênero humano: o masculino. A assim metade
da humanidade gerou os fatos - equivocados, em sua maioria - que até o presente
século criaram o drama da raça humana. Esta deveria, no mínimo, intuir que um
dos lados não prospera cosmologicamente sem o outro.
Ainda não foi concluída uma história universal das
mulheres. Diriam: e a dos homens? Esta já tem o "status" de uma
ciência em muitos países do mundo. A Inglaterra e os EUA se dedicam ao
que se passou nos séculos, relativamente às mulheres. Com Trump, aguarde-se o
fim dessa "perfumaria acadêmica".
Mais do que a importância de comemorar o dia das
mulheres, importa conhecer o passado e delinear o futuro. Analiticamente, sem
derrapadas lógicas e ideológicas.
Como se não fossem seres humanos, as mulheres pouco
figuram em nossa aventura sobre o planeta. Os grandes reverenciavam deusas
mitológicas, o "passa tempo" dos primeiros inteligentes. Na
ficção. As mulheres, como outros segmentos, não tinham vez, delas não se
fala nas recordações de academias e liceus. Os romanos, tomados pelo direito e
a forte personalidade do "paterfamilias", menos ainda.
Na Idade Média, mulheres tiveram destaque entre os
alquimistas e terminaram na fogueira. De todo modo, acabavam com mais destaque
num mundo muito menos agitado e com suas ferramentas, parcas, de evolução,
tomadas pelos homens.
O que se pode dizer, sem necessidade de ingressar em
exemplos nominais, em exceções confirmatórias da regra, é que não é nenhum
exagero o emprego do termo "mulher-objeto", salvo quando se presta a
panfletos superficiais. Se as mulheres não foram sujeitos de direito privado e
de direito político, a ponto de serem raras suas menções, só podem ter sido
objeto. Como os demais, integrantes do mundo material e não espiritual, do
elenco de seres humanos semiautomáticos, no exercício de funções que Zeus lhes
reservou. Não foram somente elas, mas também a imensa maioria dos homens
dominados pela vontade de outros. Lembrem-se os jovens sucumbentes nas batalhas
repulsivas e da grande maioria espoliada dos bens terrenos.
Parece-nos que a ideia dos direitos das mulheres
começou a germinar no século XVIII e XIX com o romantismo alemão. O filósofo
Emmanuel Kant, do mundo transcendental, em seus escritos éticos pronunciou o
enunciado tantas vezes repetido: trate seus semelhantes como se fosse um fim,
jamais como um objeto. Em momento algum passaria pelo forte espírito de
Konigsberg afastar as mulheres dessa interpretação finalística do gênero
humano. Era um metafísico, um romântico, mas poucos creditaram valor aos
metafísicos e românticos. O sofrimento dos poetas foi escrito nas grandes mesas
de gloriosas universidades.
E a metafísica foi ridicularizada pelos empiristas,
como Hume, para quem todo conhecimento só poderia vir do sensível, da natureza
e da sociedade concreta.
Como se esses elementos volúveis da matéria tosca e da
natureza instável não fossem profundamente enganadores. Do mesmo modo, pode-se
falar dos positivistas. As sementes tiveram alguns resultados expressivos há
não mais de meio século, dada a pungente luta das mulheres, mas tudo restou
incompleto e confinado ao mundo material, dadas as influências
político-ideológicas no feminismo, às quais falar em mundo espiritual é um
insulto, face às desigualdades entre os sexos ainda largamente
disseminadas.
Creio que o grande engano está em se considerar o mundo
físico como um projeto divino. Basta vê-lo, com todas as impropriedades,
inclusive da natureza.
O homem não teve de se assimilar à natureza, em muitos
momentos de desertificação, geleiras impiedosas, circunstâncias completamente
adversas à vida, graças à sua coragem e seu talento? O que é o talento, senão a
expressão espiritual de categorias "priori", razão de nosso eu
transcendental, que aperfeiçoa o grosso mundo material? O que sobra de
verdadeiramente bom neste mundo, além da sobrevivência (não sabemos até
quando), meramente física, de nossos cérebros, corações, intestinos e fígados?
A mulher e o homem não teriam nas profundezas de seus seres metas e fins que os
acomodaria na imensidão do cosmos e do universo? Se os homens, desde Kant,
tivessem olhado para todos seus irmãos e irmãs com fins e não como objeto, com
certeza este mundo já seria outro, inteiramente outro.
O pensamento de Kant foi magnificamente fecundado por
Fichte. Homens e mulheres não foram feitos para aperfeiçoar o mundo material
preexistente, mas para fazer deste o que nos dizem, com liberdade e autonomia,
nossas almas e nosso espírito, cada um com seu eu-profundo e criador, que se
harmoniza com todos os eus-profundos e livres, de cuja sintonia a vida cósmica
se afirmará.
Algo completamente diverso do que costumamos ver e enfrentar
cotidianamente em nossas vidinhas, ao nos lançarmos a entender e coordenar os
eventos diários que nos são impostos, e nos amarram às suas soluções, como se
essa prática fosse o exercício supremo da liberdade do homo sapiens.
Depois do fracasso das teorias filosóficas, em geral
voltadas à economia e à política, sem delas descuidar, tenho para mim que
condição de nossa sobrevivência nos próximos séculos está condicionada à
ressurreição da metafísica, a volta a Platão e sua teoria da caverna, aos
pensadores citados, à teoria dos valores que se encarna na cultura, nas artes
em geral, na imaginação, na revisão de nossa fundamentalidade, cujas garras
apreensoras do real o torna dependente de cada observador, que dá forma ao
mundo da matéria. Só na íntima transcendência das mulheres e dos homens
poderemos encontrar o verdadeiramente humano.
Por isso tudo, sustentamos que os homens fracassaram ao
não considerar e respeitar as mulheres como fins, mas tratá-las, simplesmente,
como meios, que os auxiliavam, silenciosamente, em todos seus propósitos
meramente materiais.
Entretanto, é indispensável observar que esse estado de
coisas foi imposto às mulheres não pela grande maioria dos homens, mas por
minorias que governaram a todos, desde os tempos mais primevos.
Consequentemente, somente a esses aproveitadores, ainda hoje, vale o cisma
materialista entre homens e mulheres, como se fossem espécies beligerantes que,
a qualquer momento, podem divergir e reforçar os reinados do "real".
Essa grande maioria não tem consciência dos eus-profundos, da liberdade
verdadeira, do saber racional e do querer que brotam do romantismo filosófico
(não confundir com as superficialidades habituais) , e nossa missão comum é
reciclar o gênero humano em sua totalidade. Os que nos chamam de utópicos mal
percebem que vivem a cavar suas próprias sepulturas.
Em suma, homem e mulher, gênero único, ainda que
espécies biologicamente distintas, o que permitiu sua evolução, somente quando
identificados pela homogeneidade de seus destinos comuns e metarreais, poderão
suprimir o dia 8 de março, porquanto a felicidade, filha da liberdade
incondicional de todos, será incompatível com restrições e discriminações
próprias de uma sociedade imperfeita. E a data perderá seu sentido que, hoje, a
justifica sob múltiplos aspectos.
Amadeu Roberto
Garrido de Paula - Advogado e membro da Academia
Latino-Americana de Ciências Humanas.