A Lei Nº 11.340, promulgada em 07 de agosto de 2006, também chamada Lei Maria da Penha, representou um importante marco jurídico na defesa dos direitos das mulheres brasileiras, por tratar de forma integral o problema da violência doméstica. A lei criou instrumentos de proteção e acolhimento emergencial à mulher em situação de violência, isolando-a do agressor, e ofereceu mecanismos para garantir a assistência social e psicológica à vítima e preservar seus direitos patrimoniais e familiares. Além disso, sugeriu aperfeiçoamento e efetividade do atendimento jurisdicional e previu instâncias para o cuidado do agressor.
É importante relembrar
que Maria da Penha Fernandez é uma mulher que se transformou em símbolo da luta
das mulheres contra a violência após ter buscado justiça durante 19 anos e 6
meses em relação à violência que sofreu dentro do seu matrimônio. Nesse tempo,
ela foi vítima de tentativas de feminicídio, praticadas pelo seu esposo Marco
Antônio Heredia Viveiros, gerando consequências irreparáveis. Infelizmente,
Maria da Penha ficou paraplégica devido ao tiro que levou enquanto dormia, e
após passar por várias cirurgias retornou para casa, onde seu agressor a
esperava para uma nova tentativa de assassinato, posterior à cárcere privado e
tortura. Ela procurou justiça durante esse tempo, entretanto, foi desacreditada
pela polícia e negligenciada pelas leis que, até aquele momento, não
consideravam a especificidade da violência praticada em relação às mulheres na
sociedade brasileira.
Segundo dados do IPEC
(Inteligência em Pesquisa e Consultoria), em pesquisa publicada em fevereiro de
2021, no último ano, pode-se contabilizar que a cada 1 minuto, 25 mulheres
brasileiras sofreram violência. Esse dado significa que, no último ano, 15% das
brasileiras acima de 16 anos tiveram experiências de violência física,
psicológica ou sexual praticadas por homens de dentro ou próximos à família, o
que equivale a 13,4 milhões de brasileiras. A pesquisa pode ser considerada um
retrato das desigualdades de gênero no país que faz com que os homens
representem a grande maioria das vítimas de violência nos espaços públicos (95%
das vítimas de homicídio são homens) e as mulheres as principais vítimas da violência
doméstica.
Em estudo de avaliação
da efetividade da Lei Maria da Penha, realizado por pesquisadores do IPEA, os
resultados mostraram que a introdução da lei gerou efeitos estatisticamente
significativos para fazer diminuir os homicídios de mulheres associados à
questão de gênero. Segundo os pesquisadores, a implementação da lei afetou o
comportamento de agressores e vítimas por três canais: aumento do custo da pena
para o agressor; aumento do empoderamento e das condições de segurança para que
a mulher pudesse denunciar; e aperfeiçoamento dos mecanismos jurisdicionais,
possibilitando ao sistema de justiça criminal que atendesse de forma mais
efetiva os casos envolvendo violência doméstica. A conjunção dos dois últimos
elementos seguiu no sentido de aumentar a probabilidade de condenação do
agressor.
Esse tema ganhou ainda
mais relevância no contexto da pandemia de covid-19, trazendo novos desafios
para o enfrentamento do problema. O relatório "Visível e Invisível, a
vitimização de mulheres no Brasil", publicado em 2021 pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, indicou um incremento do número de casos de
violência doméstica em todo o mundo neste período, sendo as mulheres as
principais vítimas. Segundo o relatório, 1 em cada 4 mulheres brasileiras acima
de 16 anos afirmam ter sofrido alguma violência ou agressão nos últimos 12
meses. Tal aumento nas taxas de violência deve-se, ao mesmo tempo, ao maior
convívio com o agressor relacionado às medidas de confinamento (72% dos
agressores são conhecidos dessas mulheres); ao aumento do nível de estresse nas
famílias oriundo das dificuldades econômicas e psicológicas decorrentes da
pandemia e das políticas de combate a ela; e uma maior dificuldade no acesso à
rede de proteção às mulheres devido à restrição de atendimento destes serviços
durante a pandemia.
A violência doméstica
é uma ameaça para a vida destas mulheres, para as famílias e a sociedade como
um todo e representa um grande entrave na garantia do direito de mulheres em
viverem com saúde e em condições de dignidade. Estudos internacionais revelam,
de forma consistente, a associação entre a exposição à violência doméstica e a
experiência de sofrimentos mentais e comportamentais nas mulheres e em seus
filhos, tais como transtornos depressivos, ansiosos, abuso de substâncias,
agressividade, problemas escolares, entre outros.
Se faz importante
ressaltar a natureza das condutas que são consideradas como violência praticada
contra a mulher. Segundo o Instituto Maria da Penha, a violência física é a
mais conhecida, se caracteriza por qualquer comportamento que prejudique a
saúde corporal da mulher, como episódios de agressão ou espancamento que
envolvam atirar objetos, sacudir, apertar o braço, bem como práticas de
estrangulamento, sufocamento, lesões com objetos cortantes, ferimentos causados
por queimadura, armas ou ainda qualquer tipo de tortura. Por sua vez, a
violência psicológica tem sido divulgada com mais frequência, embora a
população muitas vezes não tenha clareza quanto as práticas que causam danos emocionais
ou diminuição da autoestima da vítima. Qualquer ato usado para degradar ou
controlar ações, crenças e comportamentos podem ser classificados como
violência psicológica, como exemplos poderíamos citar ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, vigilância constante, perseguição, insultos,
chantagem, exploração, limitação do direito de ir, vir, viajar ou falar com
amigos, ridicularização, ou ainda, a prática conhecida por gaslighting
(que se caracteriza por distorcer e omitir fatos para provocar dúvida da mulher
sobre sua sanidade mental e memória).
Apesar da violência
sexual ser bastante discutida pelas políticas de prevenção, muitas vezes ela
ainda é vista de forma restrita, como a prática associada a situações que
envolvem pessoas desconhecidas da vítima, raramente ela é associada a pessoas
conhecidas ou dentro da relação conjugal, como no estupro marital. Esse tipo de
abuso pode ser entendido como qualquer comportamento que provoque intimidação
da mulher a participar de relação sexual ou prática que cause desconforto ou
repulsa. Também é considerado violação as práticas de impedir o uso de métodos
contraceptivos, forçar a mulher a abortar, forçar matrimônio, gravidez ou
prostituição, seja pelo uso da coação, chantagem, suborno ou manipulação. A
violência patrimonial pode ser considerada como a menos conhecida dentre as
violências perpetradas contra a mulher, embora seja bastante recorrente,
principalmente em casos de divórcio ou conflitos conjugais. Essa prática se
caracteriza por atos de retenção, subtração e destruição de objetos da mulher,
como instrumentos de trabalho e documentos pessoais. Alguns exemplos dessa
conduta são controlar o dinheiro da mulher, deixar de pagar pensão, furtar
objetos ou dinheiro, e ainda, praticar extorsão ou estelionato. E por fim, a
violência moral configura ações de calúnia, difamação ou injúria, como acusar a
mulher de traição, fazer críticas mentirosas ou expor a vida íntima. Também são
considerados atos abusivos os xingamentos que incidam sobre sua índole ou
desvalorizem a mulher pelo seu modo de se vestir.
As causas da violência
doméstica são complexas e envolvem dimensões pessoais, conjugais, familiares,
sociais e programáticas. Diversos fatores devem ser considerados no
enfrentamento da violência doméstica, pois ela coloca em cena uma série de
experiências emocionais difíceis de serem elaboradas pela mulher, tais como o
medo, a vergonha, o desamparo, o luto pela quebra dos vínculos conjugais e
familiares, entre outras. É uma questão tanto familiar quanto social, que
muitas vezes necessita de intervenções externas, seja de alguém de fora da
família, seja do poder público.
A denúncia da
violência esbarra em inúmeras dificuldades. Nem sempre é simples identificar o
que é violência, inclusive pela própria vítima, que, muitas vezes demora para
dar este sentido ao vivido. Outra dificuldade é o medo das consequências da
denúncia como o receio de que ela destrua os laços familiares, ou mesmo que
intensifique as agressões. Quando a denúncia é realizada, nem sempre ela é
acolhida de forma eficaz e a partir de escuta qualificada para as suas
demandas. Neste sentido, foi implementado no Serviço Escola do curso de
Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) o Projeto Juntas que,
em parceria com a rede de atenção às mulheres em situação de violência, oferece
atendimento psicológico às mulheres e famílias em situação de violência. São
atendimentos realizados por alunos do 5º ano do curso de Psicologia e
supervisionados por professores/pesquisadores desta temática, com o objetivo de
ampliar o acolhimento do sofrimento emocional da mulher e ajudá-la no
enfrentamento desta condição, com o auxílio da rede intersetorial de
assistência jurídica, social e da saúde.
Fernando da Silveira - professor do curso
de Psicologia da UPM e é membro do Projeto Juntas.
Julia Garcia Durand - professora de
Psicologia da UPM, pós-doutora pelo IPUSP e autora de diversos artigos sobre
violência doméstica.
Aline Souza Martins - professora de
Psicologia da UPM, doutora pelo IPUSP, membro do GEPEF (Grupo de Estudos,
Pesquisas e Escrita Feminista) e da Redippol (Rede Interamericana de Pesquisa
em Psicanálise e Política).
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