Chuveirinho
(
Paepalanthus urbanianus) em campo úmido, Chapada dos Veadeiros, Goiás (foto
de Rafael Oliveira)
O Cerrado é o mais ameaçado dos grandes biomas do território brasileiro.
E uma parte especialmente vulnerável do Cerrado são suas áreas úmidas, que
garantem a existência de rios perenes e abastecem nada menos do que oito bacias
hidrográficas. O Xingu, o Tocantins, o Araguaia, o São Francisco, o Parnaíba, o
Jequitinhonha, o Paraná e o Paraguai, entre outros rios importantes, nascem no
Cerrado. A destruição de áreas úmidas não ameaça apenas a biodiversidade e a
extraordinária beleza das paisagens cerratenses. Põe em risco ainda a segurança
hídrica e energética do país.
Além
disso, as áreas úmidas são também um extraordinário repositório de carbono (C),
estocando mais de 200 toneladas por hectare. E alterações em seu equilíbrio
cíclico tendem a liberar metano (CH4) para a atmosfera, um dos principais gases
de efeito estufa (GEE).
O problema
é que a própria definição de áreas úmidas é confusa. E essa confusão tem sido
explorada por grandes produtores rurais que, não contentes em converter
descontroladamente áreas secas do Cerrado em terras agriculturáveis, cogitam
também drenar as áreas úmidas, para estender as lavouras de soja até o fundo
das veredas. Se não fosse por outros motivos, até mesmo do ponto de vista
estrito do interesse econômico isso equivaleria a erguer uma pedra para
deixá-la cair sobre os próprios pés, pois a possibilidade de irrigação depende
da sobrevivência dos mananciais.
Para dirimir a confusão e fornecer aos tomadores de decisão sólidos
critérios científicos, um grupo de pesquisadores acaba de produzir um artigo
contemplando os múltiplos ecossistemas englobados pelo conceito de áreas
úmidas. Trata-se de Cerrado wetlands: multiple
ecosystems deserving legal protection as a unique and irreplaceable treasure,
publicado no periódico Perspectives in Ecology and
Conservation.
“A falta de definições precisas tem embaralhado a regulamentação,
deixando importantes segmentos do Cerrado desprotegidos. Nosso objetivo foi
esclarecer o que são áreas úmidas; que ecossistemas podem ser abarcados por
esse nome; que dinâmicas eles apresentam; e o que devemos fazer para
protegê-los”, diz à Agência FAPESP a
pesquisadora Giselda Durigan, primeira autora do
artigo.
Durigan é
pesquisadora do Instituto de Pesquisas Ambientais do Estado de São Paulo (IPA)
e professora nos programas de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista
(Unesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Estuda o Cerrado há
mais de 35 anos.
“Um exemplo do grave risco que a falta de definições precisas e as
ambiguidades na interpretação da lei podem acarretar foi a Resolução número 45,
de 31 de agosto de 2022, aprovada pelo Conselho do Meio Ambiente de Mato Grosso
(Consema). Desrespeitando decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), essa
norma regulamentou o ‘licenciamento ambiental de atividades e empreendimentos
localizados em áreas úmidas’ no âmbito estadual. Por trás dos eufemismos do
texto, a resolução, de fato, libera a destruição”, denuncia Durigan.
A
pesquisadora define: “Áreas úmidas são porções de terras continentais que estão
sujeitas, periódica ou permanentemente, a encharcamento do solo ou inundação.
Dada a sua fragilidade e extrema importância para o armazenamento e a filtragem
da água, são globalmente protegidas, desde a convenção intergovernamental
realizada em Ramsar, no Irã, em 1971. O Brasil é signatário da convenção de
Ramsar desde 1996, mas até hoje não atendeu ao compromisso de mapear todas as
suas áreas úmidas”.
No país,
há exemplos de áreas úmidas em faixas costeiras, onde os pulsos de inundação
resultam da oscilação das marés, de modo que a água se apresenta salgada ou
salobra. E também longe da costa, compondo dois grandes tipos, hidrologicamente
distintos: terras que são periodicamente alagadas pelo transbordamento dos
leitos dos rios (várzeas e pantanais) e terras que ficam encharcadas ou até
alagadas pela elevação periódica do lençol freático.
“As áreas
úmidas do Cerrado geralmente se enquadram no último tipo. As chuvas abundantes,
que caem nos meses de verão, infiltram-se lenta e profundamente no solo,
recarregando o lençol freático e acumulando-se nas áreas úmidas, de onde brotam
os pequenos riachos que nunca secam e alimentam os grandes rios do Brasil,
mesmo nos períodos de estiagem. Diferentemente, aliás, das outras grandes
savanas do mundo, cujos grandes rios secam de todo durante boa parte do ano”,
informa Durigan.
Proteção
integral
Segundo a
pesquisadora, a confusão que embaralha a regulamentação deve-se ao fato de que,
dentro das áreas úmidas do Cerrado, existem diversos tipos de vegetação, que
resultam em múltiplas denominações regionais. São campos úmidos, campos de
murundus, turfeiras, veredas, palmeirais, buritizais, matas de galeria, matas
de brejo e por aí vai. Às vezes, em uma única área úmida, existem dois ou mais
tipos de vegetação, desde campos limpos até florestas densas, o que tem
dificultado seu entendimento, delimitação e proteção.
“A lei, às
vezes, refere-se a apenas um dos tipos, como é o caso das veredas na Lei de
Proteção da Vegetação Nativa (12.651), de 2012, deixando os demais tipos
desprotegidos. Outras vezes, a lei protege apenas uma parte da área úmida,
deixando trechos inteiros sem cobertura legal”, ressalta Durigan.
Ela conta que o artigo em pauta resultou de um esforço multidisciplinar,
envolvendo especialistas em vegetação, hidrologia, ecofisiologia, conservação,
restauração e legislação ambiental, que utilizaram seus conhecimentos e
experiências práticas para unificar e disseminar sua compreensão sobre o
assunto. O grupo teve apoio da FAPESP por meio de três projetos (19/07773-1, 20/09257-8 e 20/01378-0).
“Para nós,
todas as áreas úmidas devem ser igualmente e integralmente protegidas por lei,
garantindo-se que não sejam convertidas para cultivo e que seus pulsos naturais
de encharcamento ou inundação não sejam afetados pelo uso da terra ao redor.
Práticas de exploração sustentável, como a apicultura e o extrativismo, por
exemplo, podem ser admitidas, mas precisam ser validadas e regulamentadas”,
enfatiza Durigan.
E sua
ênfase se justifica, pois as ameaças às áreas úmidas são muitas no Cerrado,
destacando-se barramento dos córregos, drenagem das terras brejosas, expansão
de áreas urbanizadas, obras de infraestrutura, extração descontrolada de água
de poços para irrigação e plantação de árvores, principalmente de eucalipto, em
bacias hidrográficas inteiras, onde a vegetação original não era floresta.
“Todas
essas atividades são altamente impactantes. Reduzem o nível do lençol freático
ou podem até mesmo exauri-lo localmente, pondo em risco a segurança hídrica e
os serviços ecossistêmicos do Cerrado. É algo que precisa ser urgentemente
impedido por meio de legislação competente e da aplicação efetiva da lei”,
afirma a pesquisadora.
Durigan
comenta que a Lei de Proteção à Vegetação Nativa trata de maneira bastante
confusa as áreas úmidas, deixando uma parte delas como Áreas de Preservação
Permanente (APP) e outra parte como Áreas de Uso Restrito (AUR). Mas que alguns
tipos de áreas úmidas do Cerrado não se encaixam nas definições dos tipos
mencionados, o que tem gerado imprecisão na aplicação da lei, com conflitos jurídicos,
sociais e políticos.
“Buscando
pacificar a situação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que, dada a
sua inquestionável importância ambiental, todas as áreas úmidas devem ser
entendidas como protegidas, sejam como APPs, sejam como AURs, independentemente
da nomenclatura. Foi essa decisão que a resolução do Consema do Estado de Mato
Grosso desrespeitou”, sublinha a pesquisadora.
A boa notícia é que existe, no momento, um grande grupo de técnicos e
cientistas, representativos de diferentes regiões do Brasil, empenhados em
realizar o Inventário Nacional de Áreas Úmidas, sob a liderança dos
especialistas Wolfgang Junk e Cátia Nunes da Cunha, do INCT Áreas Úmidas (Inau), para
dar suporte ao Ministério do Meio Ambiente.
“A
Plataforma MapBiomas incluiu recentemente a legenda ‘Áreas Úmidas’ em seus
mapas, o que se constitui em grande avanço. Porém, demarcar as áreas úmidas em
campo, na escala de uma propriedade rural, não é uma tarefa fácil e isso
atrapalha a aplicação das leis. Nosso artigo propõe critérios objetivos,
baseados no solo hidromórfico, na flora endêmica e na elevação máxima do lençol
freático para facilitar a delimitação de áreas úmidas em escala local”, conclui
Durigan.
O artigo Cerrado wetlands: multiple ecosystems
deserving legal protection as a unique and irreplaceable treasure pode
ser acessado em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2530064422000384?via%3Dihub.
José Tadeu Arantes
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/estudo-propoe-criterios-para-ajudar-a-delimitar-e-conservar-as-areas-umidas-do-cerrado/40235/