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| Foram analisadas 94 amostras de tecido tumoral conservadas em parafina (José Guilherme Datorre et al./Journal of Oral Microbiology ) |
Por décadas, os cuidados com a
saúde bucal foram associados principalmente à prevenção de cáries e doenças
gengivais. No entanto, a ciência tem tornado cada vez mais evidente a
importância do microbioma oral – um conjunto de microrganismos que habitam naturalmente
a cavidade bucal. Estudos recentes têm demonstrado ligações entre
desequilíbrios nesse ecossistema microbiano e o desenvolvimento de cânceres de
cabeça e pescoço, além de associações cada vez mais sólidas com o câncer
colorretal.
Entre as espécies microbianas
que mais têm chamado a atenção da comunidade científica está a Fusobacterium
nucleatum, uma bactéria normalmente encontrada em baixos níveis na flora
bucal de indivíduos saudáveis. Sua proliferação descontrolada, no entanto, tem
sido associada a doenças inflamatórias (como periodontite e outros problemas da
cavidade bucal) e, mais recentemente, ao aumento do risco de desenvolver
tumores malignos em outras partes do corpo.
A associação da F.
nucleatum com tumores despertou, há alguns anos, o interesse de
pesquisadores do Hospital de Amor (antigo Hospital de Câncer de Barretos), que
iniciaram estudos sobre o papel do microrganismo no câncer colorretal. Mais
recentemente, com apoio da FAPESP e de outras agências de fomento, o grupo expandiu as
investigações para entender sua possível atuação nos tumores de cabeça e pescoço.
Descobriu que, nesses casos, a presença da bactéria está associada a melhor
prognóstico e maior sobrevida. Os resultados foram publicados no Journal of Oral Microbiology.
Liderado pelo pesquisador Rui Manuel Reis, diretor científico do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital de
Amor, o estudo utilizou uma metodologia ultrassensível (o PCR digital) para
detectar a presença da F. nucleatum no tecido tumoral. Para
isso, os pesquisadores analisaram 94 amostras de pacientes com diferentes tipos
de câncer de cabeça e pescoço tratados na instituição.
“Realizamos a análise
intratumoral a partir de material de arquivo parafinado [conservado em
parafina], que foi usado originalmente para diagnóstico desses pacientes”,
explica Reis. “Com as metodologias mais tradicionais, seria difícil identificar
a presença dessa bactéria com a mesma precisão em material degradado, como o de
parafina. No entanto, a técnica de PCR ultrassensível oferece uma alta
confiabilidade e sensibilidade – até mesmo traços mínimos de DNA bacteriano
podem ser detectados”, destaca.
O diferencial, segundo o
pesquisador, foi detectar a bactéria dentro das células tumorais, um achado
surpreendente. “Se analisarmos a saliva de uma pessoa, é provável que
encontremos essa bactéria, já que ela está normalmente presente na cavidade
bucal e compõe o biofilme dental. O que não se esperava, porém, é que ela
estivesse localizada dentro do microambiente tumoral”, ressalta Reis.
Melhor
prognóstico
Ao longo de aproximadamente
cinco anos, os pesquisadores acompanharam os dados clínicos dos pacientes e
constataram que a presença da F. nucleatum nos tumores estava
associada a um prognóstico mais favorável. Ela foi identificada em 59,6% dos
casos, com maior prevalência em tumores de orofaringe (62,1%) do que de
cavidade oral (53,6%).
Pacientes cujos tumores apresentavam
a bactéria tiveram sobrevida média de 60 meses, enquanto os demais viveram, em
média, 36 meses – uma diferença significativa. “Não esperávamos esse resultado,
pois, em outros tipos de câncer, como o colorretal, a presença da bactéria
costuma estar associada a maior agressividade e menor sobrevida”, comenta Reis.
Apesar do achado promissor, os
pesquisadores ainda não compreendem completamente o motivo dessa associação
positiva entre a presença da F. nucleatum e o melhor
prognóstico nos casos de câncer de cabeça e pescoço. Uma das hipóteses é que a
bactéria atue na regulação de fatores imunológicos, potencializando a resposta
do sistema imune e, assim, tornando o tumor menos agressivo. “Ainda não temos
essa resposta, mas vamos aprofundar as investigações. Esse será o próximo
passo”, diz o pesquisador.
Outra linha de estudo buscará
entender se a presença da F. nucleatum nos tumores pode
influenciar a resposta às terapias, o que abriria caminho para abordagens mais
personalizadas no tratamento desses pacientes. Se confirmada, a bactéria poderá
se tornar um importante biomarcador para o prognóstico do câncer de cabeça e
pescoço.
“Mostramos que mesmo usando
material antigo e em pequenas quantidades conseguimos detectar essa bactéria.
Ou seja, se no futuro ela for validada como biomarcador, já temos uma técnica
eficaz para identificá-la no tecido tumoral”, destaca Reis.
Uma
possível oncobactéria?
Na avaliação de Reis, a análise
do microbioma oral torna-se cada vez mais essencial na compreensão da oncologia
moderna. “Mais do que apresentar um resultado definitivo, este é um estudo
pioneiro, que chama a atenção para a relevância dessa bactéria no contexto
tumoral, e não apenas em doenças bucais”, afirmou Reis.
Este é apenas o começo de uma
nova linha de investigação. “Essa bactéria está emergindo como uma importante
moduladora no contexto do câncer e pode consolidar o uso do termo
‘oncobactéria’”, afirma. “Se for comprovado que ela participa da origem do
câncer, antibióticos poderão até ser considerados como terapia complementar à
quimioterapia e à radioterapia.”
Pesquisas futuras poderão
revelar se a presença da F. nucleatum está relacionada a
diferentes respostas ao tratamento, abrindo caminho para estratégias mais
personalizadas. A partir desse conhecimento, será possível identificar com mais
precisão quais terapias são potencialmente mais eficazes para cada tipo de
câncer, com base na presença ou ausência da bactéria.
A doença
no Brasil
O câncer de cabeça e pescoço
engloba uma série de tumores malignos que podem aparecer na boca, orofaringe,
laringe, nariz, seios nasais, nasofaringe, órbita ocular, pescoço e tireoide.
De acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca), os principais fatores de
risco são tabagismo, etilismo e infecção pelo vírus HPV, má higiene bucal e a
desnutrição.
Dados do Inca apontam que
aproximadamente 80% dos casos diagnosticados no Brasil entre 2000 e 2017 foram
identificados em estágios avançados, o que reduz significativamente as chances
de sucesso no tratamento. Esses números reforçam a importância de estratégias
para o diagnóstico precoce e o desenvolvimento de novas ferramentas
prognósticas, como as apontadas neste estudo.
O artigo Intratumoral
Fusobacterium nucleatum is associated with better cancer-specific survival in
head and neck cancer patients pode ser lido em: www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/20002297.2025.2487644#abstract.
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/bacteria-comum-na-boca-pode-ajudar-a-prever-evolucao-do-cancer-de-cabeca-e-pescoco-aponta-estudo/54860

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