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sexta-feira, 1 de setembro de 2023

"Não existe guerra contra drogas no Brasil", diz psiquiatra

Especialista em Saúde Pública, Ana Cecilia Marques afirma que políticas públicas antidrogas brasileiras estão equivocadas quando a maior parte do orçamento é direcionado principalmente na repressão ao tráfico. A psiquiatra e o advogado Piti Hauer discutirão o assunto durante o Congresso da ABEAD

 

“Não existe guerra contra drogas no Brasil há muito tempo. Aqui existem até locais abertos de uso de drogas onde nem traficante vai preso”. Com essa declaração, a doutora em Neurociências, psiquiatra e especialista em Saúde Pública e Saúde Mental Ana Cecilia Petta Roselli Marques resume o que vem acontecendo no país, nos últimos anos. Segundo ela, hoje a legislação brasileira sobre combate às drogas privilegia a repressão ao tráfico, para onde vai a maior parte dos recursos e isso tem se mostrado ineficaz. “Só algumas políticas públicas recebem subsídios para implantação. O conjunto de medidas para equilibrar os outros dois braços - a redução da demanda e o do controle da oferta – não são lembrados. Essas medidas devem ser construídas a partir de uma avaliação de necessidade e de recursos disponíveis e fundamentadas em evidências científicas. Quando implantadas, devem priorizar a intersetorialidade e seguir um planejamento sustentável e equânime, além de ser avaliada, continuamente. E se não for assim, não funciona”, afirma.

Isso leva também a outros problemas: os outros dois eixos básicos das políticas públicas antidrogas - prevenção e tratamento - estão sucateados porque faltam recursos e por não verem o usuário como pessoa, diz o advogado Piti Hauer, membro do Núcleo Estadual de Políticas Sobre Drogas (NEPSD) do Paraná. “Não adianta políticas públicas sobre drogas se pensarmos só no objeto e não nas pessoas. E se não pensarmos em desenvolvimento social, em reinserção de usuários à sociedade, nada vai mudar. A reinserção social é um grande buraco negro nas políticas. Oferece um tratamento e depois? Pessoas cumprindo pena que foram usuárias, além de levar o estigma de usuário, ainda tem o estigma do apenado. Tem que começar a repensar a maneira de fazer políticas públicas no Brasil, se não ela vai continuar uma gestão de recursos para os amigos”, garante.   

Ana Cecília e Hauer são dois dos especialistas que participarão do XXVII Congresso da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Drogas (ABEAD), que será realizado a partir do próximo domingo (3), em São Paulo. A psiquiatra coordenará o Fórum de Prevenção, que acontece no dia 5, das 14 às 18 horas. Hauer será o coordenador do I Encontro de Juristas e Outros Operadores do Direito, que acontece dia 6, das 9 às 12 horas.

Para a psiquiatra, o Brasil está “engatinhando” sobre o tema. “Continuamos trazendo experiências internacionais e ‘tentando aculturá-las por aqui’, quando a nossa realidade é muito diferente dos países desenvolvidos, cujas estratégias queremos sempre copiar...e aí, nunca vai dar certo”. Segundo ela, parece retórica, mas é preciso “começar do começo”. “E começo significa diagnóstico das necessidades e dos recursos que já temos, e garantir o financiamento do que falta. E mais, regionalizar as estratégias, pois é fácil de entender que tudo é tão diferente entre o Norte e o Sul do país, que as políticas devem ser diferentes também”, aponta.

O direcionamento da maior parte das verbas públicas para as Secretarias de Estado de Segurança Pública combater o tráfico não é uma forma eficaz de trabalho, segundo a psiquiatra. “Esse modelo já se mostrou ineficaz em muitos países e no Brasil também. É preciso distribuir os recursos em pelo menos um tripé: prevenção, tratamento e mais uma medida de controle da oferta, como por exemplo, no aumento da idade para obter o produto. Outro exemplo, existe o SUS, mas não existe prevenção na atenção primária à saúde; existe o CAPS AD, mas não aplicam boas práticas, o melhor tratamento disponível, que é baseado em evidências científicas, e assim por diante”, afirma.


Hauer concorda e diz que a prevenção hoje, no Brasil, está baseada em campanhas educativas. “Aqui só ficarmos com as campanhas, algumas dão certo, outras não.  A grande maioria não dá. A campanha tem que ser inteligente, bem fundamentada em pesquisas e ir ao ponto do que se deseja atingir. Estão muito aquém do que se poderia desejar”, diz. Além disso, ele diz que se espera retornos rápidos, mas que isso não é possível. “Veja o caso da Islândia que aplicou metodologia de prevenção nas escolas e deu resultados depois de 10 anos. O país que era um dos maiores consumidores de álcool entre adolescentes e jovens e hoje o consumo é quase zero nessa faixa”, afirma.

Para ele, é preciso investir em prevenção de drogas dentro do currículo escolar, em uma formação constante, inclusive nas férias. “Hoje temos o Proerd, um programa que leva palestras periódicas às escolas. Mas qual o resultado disso? A prevenção tem que estar na grade curricular de todos os anos letivos”, afirma.

Nos últimos anos, o país reduziu drasticamente o orçamento para as políticas públicas antidrogas e isso já está trazendo consequências. Em termos de repressão, as Secretarias de Estado de Segurança Pública dependem de leilões de veículos apreendidos com o tráfico para equipar as polícias, como é o do Paraná, que não tem um orçamento próprio para isso. “Mas não é o único. A grande maioria dos estados é assim, não interessa em que secretaria esteja o departamento responsável sobre o assunto. A meu ver, esse também é um grande erro. Deveria haver uma Secretaria Especial de Políticas sobre Drogas ligadas à Casa Civil, com orçamento próprio”, afirma Hauer.

Para Ana Cecília, os efeitos dos cortes no orçamento, que já era pequeno, já está sendo sentido. “Já vem ocorrendo um aumento do consumo e suas consequências, como o uso precoce; a violência; a gestação na adolescência; a contaminação por DSTs; a evasão escolar; a incapacidade e a mortalidade precoces; a escalada para um padrão de múltiplas substâncias de abuso; os acidentes fatais no trânsito; o aumento da incidência de transtornos mentais graves e do suicídio; o aumento de doenças crônicas não transmissíveis; o enfraquecimento da família, entre outros impactos”, aponta.

“Precisamos otimizar as informações que temos, oriundas de pesquisas de qualidade sobre aspectos diversos relacionados ao tema, capacitando os formuladores de políticas para que as medidas venham da nossa necessidade e sejam direcionadas, no caso das políticas preventivas, para a família brasileira, cujo infante vai receber um modelo de proteção bem cedo na vida. Prevenção começa em casa, continua na escola e se estende para a comunidade. Já existe uma ciência da prevenção e aplicar seus princípios pode mudar o destino de um ser em formação. É uma ação complexa, mas se salvar uma vida já valeu a pena!”, afirma a psiquiatra.


Congresso da ABEAD

O XXVII Congresso da ABEAD começa no próximo domingo (dia 3), no Centro de Convenções Rebouças em São Paulo (SP). Com uma extensa programação e mais de 170 palestrantes, o congresso traz, este ano, o tema “Diversidade: Eu, Tu, Eles…É Nós” para enfatizar que a adicção não é um problema apenas do usuário, mas de toda a sociedade e que é necessário uma soma de esforços para alcançar o objetivo comum: garantir políticas públicas coerentes e modernas, com assistência de qualidade às pessoas com transtornos por uso de substâncias e comportamentais e a seus familiares.

Confira a programação completa no site


ABEAD
abead.com.br

 

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