Principais
consumidores de dispositivos eletrônicos de fumo, adolescentes e jovens estão
no centro das preocupações dos especialistas; Danos a longo prazo não podem ser
totalmente medidos, mas dados coletados até aqui acenam para um retrocesso no
combate ao tabagismo e controle dos casos de câncer em decorrência do fumo em
todo o mundo
Era para ser uma era de otimismo, pelo menos em se
tratando de tabagismo no Brasil: a geração Z, aquela nascida entre 1995 e 2010,
seria a primeira com níveis históricos de não fumantes. Isso porque ao longo de
30 anos políticas e leis vêm sendo aplicadas para reduzir esse consumo. Porém,
a realidade vem se mostrando diferente e perigosa. A chegada dos vapes
e cigarros eletrônicos atrai cada vez mais os jovens e seu consumo,
provavelmente tão maléfico quanto o tabaco, coloca décadas de luta em cheque.
No Brasil, um levantamento do Ipec (Inteligência em
Pesquisa e Consultoria) aponta que 2,2 milhões de adultos (1,4%) afirmaram ter
consumido os dispositivos eletrônicos para fumar até 30 dias antes da pesquisa.
Em 2018, o índice era de 0,3% entre a população, menos de 500 mil consumidores.
E o problema vai além: cerca de 6 milhões de adultos fumantes afirmam já ter
experimentado cigarro eletrônico, o que representa 25% do total de fumantes de
cigarros industrializados, um acréscimo de 9 pontos percentuais em relação a
2019, conforme a mesma pesquisa. Tendência semelhante ocorre nos Estados
Unidos, onde uma em cada cinco pessoas (20%) entre 18 e 29 anos usa produtos
vaping, segundo o National Youth Tobacco Survey (NYTS).
Por isso, no Agosto Branco - mês de prevenção ao
câncer de pulmão e combate ao fumo - o alerta é focado no consumo aumentado de
cigarros eletrônicos. “Como o surgimento dessa alternativa ‘moderna’ é
razoavelmente recente, sendo difundido há pouco mais de uma década, ainda não
podemos dizer precisamente sobre seus efeitos a longo prazo. Contudo, a
comunidade científica já aponta que há indícios de que podem ser tão ou mais
maléficos que o cigarro tradicional, que comprovadamente causa câncer de
pulmão, entre outros tipos de tumores e doenças. Isso significa que, assim como
ocorreu no passado com as gerações que tinham no cigarro tradicional um símbolo
de charme e status, poderemos ter nas próximas décadas uma epidemia de
casos de neoplasias pulmonares entre a chamada gen-Z", alerta o
oncologista William Nassib William Jr, líder nacional da especialidade de
tumores torácicos do Grupo Oncoclínicas.
A preocupação do médico é justificada pela
Organização Mundial de Saúde (OMS), que também vem alertando para os males do
uso da nicotina em pessoas menores de 20 anos, e sinaliza que crianças e
adolescentes que usam esses dispositivos têm mais riscos de se tornarem
fumantes na vida adulta. Globalmente, segundo relatório divulgado em 2021 pela
entidade, 84 países não contam com quaisquer medidas contra a proliferação
deste tipo de produto. Outros 32 países proíbem a venda desses vapes e 79
adotaram pelo menos uma medida para limitar seu uso, como a proibição da
propaganda.
"Os cigarros eletrônicos são proibidos no
Brasil e, portanto, não regulamentados e nem controlados por órgãos
competentes. Essa é uma questão que não deve ser ignorada. Apesar disso,
estamos vendo um crescimento significativo do consumo, especialmente
entre adolescentes e jovens adultos, e já observamos danos à saúde em diversos
casos, inclusive fatais, especialmente por inflamação no pulmão, conforme
relatos clínicos coletados em todo o mundo”, alerta o especialista.
Cigarro eletrônico também
vicia
O consumo de cigarros eletrônicos vai na direção
oposta do que vinha ocorrendo com o cigarro tradicional: se em 2000, 30% dos
brasileiros eram tabagistas, esse índice chegou a 9% este ano, um dos menores
do mundo. Em contrapartida, com a adesão das novas gerações ao uso de
dispositivos tecnológicos, esses índices podem voltar a crescer drasticamente.
O motivo é explicado pelo Instituto Nacional do Câncer (INCA), que
realizou em 2021 um estudo que indica que o cigarro eletrônico também aumenta
mais de três vezes o risco de experimentação do cigarro convencional e mais de
quatro vezes o risco de uso do cigarro tradicional. Em sua análise,
o levantamento reforça que o cigarro eletrônico eleva as chances de
iniciar o uso do cigarro tradicional para aqueles que nunca fumaram.
E mais fator preocupante e grave apontado pelo
oncologista do Grupo Oncoclínicas é o poder viciante dos cigarros eletrônicos:
alguns podem conter nicotina correspondente a 5 maços de cigarro comum. "A
nicotina em si não é fator de risco para o câncer, mas é ela que vicia. Ou
seja, uma pessoa que consome esse produto pode ficar viciada ainda mais rápido e,
inclusive, migrar para o cigarro tradicional. O apelo desses dispositivos está
muito ligado à forma: parecem gadgets, modernos, hi tech, o que dialoga muito
com essa nova geração. Mas é um perigo para a saúde e assusta o fato de que não
sabemos o que pode acontecer a longo prazo", enfatiza William William.
O médico explica que o cigarro eletrônico vaporiza
um líquido, às vezes, saborizado, outro ponto de atração para os mais jovens.
“Em teoria, há alguns estudos, em ambientes controlados e com as substâncias
também bem dosadas, em que os e-cigarros são menos nocivos à saúde e ajudam
quem quer parar de fumar. Mas essa não é a realidade por aí: é importante
ressaltar que a ideia de que os vapes vendidos contêm uma quantidade de
‘ingredientes’ danosos muito inferior ao do cigarro tradicional não é verdade.
Mesmo sem contar com itens como o tabaco em sua composição, esses dispositivos
eletrônicos possuem outros elementos que podem ser altamente prejudiciais”,
diz.
Alto custo para a saúde
pública
Além das questões de impacto direto à saúde da
população, o declínio no número de tabagistas nas últimas décadas foi
importante também para a queda nos custos aos cofres públicos causados pelos
males do vício. Por isso, o retrocesso no combate ao fumo em termos de financeiros
é outra ameaça trazida pelos cigarros eletrônicos que não pode ser ignorada. Um
estudo da Escola de Enfermagem da Universidade da Califórnia, em São Francisco,
e publicado na revista Tobacco Control, apontou que os vapes
custam ao país cerca de US$ 15 bilhões por
ano (aproximadamente R$ 75 bilhões) em gastos de saúde.
"O consumo de vapes traz um
impacto na qualidade de vida e no bem estar das pessoas, e isso gera
reflexos diretos ao sistema de saúde como um todo, que precisa estar
preparado para lidar com o aumento de doenças geradas por esse mau hábito de
vida. No Brasil ainda não temos estudos robustos sobre esses gastos, mas
com o aumento do uso desses dispositivos eletrônicos podemos presumir que esses
valores também serão muito significativos aqui, em linha com o que vem sendo
observado nos EUA", comenta William William.
Vale lembrar que o tabagismo continua sendo o maior
responsável pelo câncer de pulmão em todo o mundo. Aliás, não apenas deste tipo
de tumor: em 2023, conforme dados do INCA, 73.500 pessoas foram diagnosticadas
com algum tipo de câncer provocado pelo tabagismo no país e 428 pessoas morrem
diariamente no país por conta dele. A entidade aponta ainda que mais de 156 mil
mortes poderiam ser evitadas anualmente se o tabaco fosse evitado.
Em 79% dos casos de câncer de pulmão, por exemplo,
os pacientes eram fumantes, ou ex-fumantes. Apenas 21% nunca tiveram contato
com o tabaco. “Todo ano, cerca de dois milhões de pessoas são diagnosticadas
com câncer de pulmão ao redor do globo. E quem fuma tem de 20 a 30 vezes mais
chances de desenvolver esse tipo de tumor. Isso porque as substâncias químicas
presentes no cigarro danificam e provocam mutações no DNA das células
pulmonares, fazendo com que deixem de ser saudáveis e se transformem em células
malignas”, diz o especialista.
O hábito de fumar também contribui para o aumento
no risco de ocorrência de ao menos outros 12 tipos de câncer: bexiga, pâncreas,
fígado, do colo do útero, esôfago, rim e ureter, laringe (cordas vocais), na
cavidade oral (boca), faringe (pescoço), estômago e cólon, leucemia mielóide
aguda. Adicionalmente, o hábito está relacionado a formas mais graves de
infecção pelo vírus da Covid.
“Não sabemos até que ponto vapes e cigarros
eletrônicos se equiparam ou superam os danos causados pelo cigarro
convencional. Mas a crença sobre a suposta ‘fumaça limpa’ é infundada. É
preciso um trabalho ativo de conscientização da população para que
não observemos os mesmos efeitos negativos gerados pelo tabagismo”, finaliza
William William.
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