Estudo conduzido na USP ajuda a entender por que idosos são mais
suscetíveis à infecção pelo SARS-CoV-2 e o motivo de a forma grave da doença
estar associada a distúrbios de coagulaçãoResultados indicam que pacientes com COVID-19 têm um
aumento significativo, e associado à idade, dos níveis
de autoanticorpos contra 16 alvos
(imagem: kjpargeter/Freepik)
Estudo publicado nesta quinta-feira
(24/08) na revista NPJ Aging, do grupo Nature, revela
que a infecção causada pelo vírus SARS-CoV-2 pode disparar a produção de
autoanticorpos – moléculas relacionadas, entre outros fatores, às doenças
autoimunes. O achado explica por que os idosos tendem a ser mais suscetíveis à
COVID-19 e o motivo de a forma grave da doença estar relacionada com distúrbios
de coagulação sanguínea, como trombose.
“A descoberta abre caminho para entendermos uma série de eventos patológicos
decorrentes da COVID-19, que vão desde a perda de memória até a morte súbita
por trombose de maior dimensão. A hiperinflamação característica da COVID-19
grave e o aumento dos autoanticorpos geram o trombo e, por consequência, a
necessidade de reconstruir tecido e de recrutar uma cascata de coagulação.
Trombose e inflamação são dois eventos imunológicos intimamente ligados e o
nosso estudo é mais um a confirmar essa importante relação”, afirma Otávio Cabral-Marques, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
(FM-USP) e coordenador do estudo, que contou com apoio da FAPESP
(projetos 18/18886-9, 20/01688-0, 20/07069-0, 20/16246-2 e 20/09146-1) e colaboração de grupos de pesquisa alemães e norte-americanos.
Outro aspecto interessante do estudo, segundo Cabral-Marques, é que a
elevação dos níveis de autoanticorpos (anticorpos que reconhecem uma ou mais
proteínas do próprio indivíduo, podendo causar danos ao organismo) observada em
pacientes com COVID-19 grave pode eventualmente valer para outras patologias.
“Não se trata de uma exclusividade do SARS-CoV-2, outros patógenos
também podem elevar os níveis de autoanticorpos. Isso faz com que essas
moléculas se tornem marcadores ou alvos terapêuticos relevantes para salvar
vidas de pacientes que estejam com sepse, por exemplo, em um estágio quase
terminal”, diz o pesquisador à Agência FAPESP.
Para chegar a essas conclusões, os pesquisadores analisaram dados
referentes a autoanticorpos de 159 pacientes com COVID-19 que apresentavam
diferentes graus de gravidade: 71 tinham doença leve, 61 moderada e 27 grave.
Também foram analisadas amostras de 73 indivíduos saudáveis, que serviram como
controle.
“Ao cruzar os dados por meio de técnicas de inteligência artificial,
descobrimos dois autoanticorpos principais que estavam exacerbados nos
pacientes com sintomas graves. São justamente os autoanticorpos associados à
formação de trombos e trombocitopenia [número reduzido de plaquetas no sangue,
condição que aumenta o risco de hemorragia]”, conta Dennyson Leandro M. Fonseca,
coautor do artigo.
Fonseca explica que altos níveis desses autoanticorpos podem fazer com
que o próprio organismo gere o dano tecidual a partir de trombos e de netose
(mecanismo imunológico que consiste na saída do material genético presente no
núcleo de neutrófilos, um tipo de leucócito, em forma de redes, que são
lançadas pelas células de defesa para o meio extracelular na tentativa de
prender e matar patógenos).
“Dividimos os dados entre jovens e idosos e, com isso, observamos que,
embora esse mecanismo também possa acontecer entre pessoas com menos de 50
anos, ele torna o idoso mais suscetível ao agravo da doença. Isso justifica o
fato de a idade ser um dos principais fatores de risco para a COVID-19”, diz o
pesquisador.
Vale destacar que o aumento sutil de autoanticorpos faz parte do
processo natural de envelhecimento. No entanto, os cientistas observaram que,
diante da infecção pelo SARS-CoV-2, há uma exacerbação dos níveis dessas moléculas
no organismo, sobretudo em pacientes graves.
Estudos anteriores já haviam demonstrado que autoanticorpos
neutralizantes de proteínas que integram a primeira linha de defesa antiviral
(interferon) estavam presentes na população em geral e cresciam dramaticamente
em pacientes idosos com COVID-19. O estudo agora publicado na revista NPJ
Aging expande a variedade de autoanticorpos associados ao
envelhecimento. Além disso, confirma que o impacto dos autoanticorpos varia de
acordo com a idade e a gravidade da COVID-19.
O grupo descobriu que os pacientes com COVID-19 têm um aumento
significativo, e associado à idade, dos níveis de autoanticorpos contra 16
alvos, como, por exemplo, peptídeo β amiloide, β catenina, cardiolipina,
claudina, nervo entérico, fibulina, receptor de insulina A e glicoproteína
plaquetária.
“Isso abre caminho para a validação dos mecanismos de ação dos
autoanticorpos e amplia o conjunto de alvos, fornecendo uma imagem mais
abrangente da fisiopatologia e da progressão da COVID-19 em relação ao
envelhecimento avançado. Isso permite direcionar melhor as intervenções
necessárias”, avalia Cabral-Marques.
Problema sistêmico
Já se sabe que pacientes com COVID-19 grave desenvolvem danos profundos
nos órgãos devido a uma combinação de várias respostas autoinflamatórias e
autoimunes. Esse processo pode resultar em miopatia (músculos), vasculite
(vasos sanguíneos), artrite (articulações), síndrome antifosfolipídica
associada a trombose venosa profunda, embolia pulmonar e acidente vascular
cerebral, bem como lesões nos rins e no sistema neurológico.
Além disso, a desregulação imunológica é uma característica da síndrome
pós-COVID, podendo causar sintomas heterogêneos, como fadiga, disfunção
vascular, síndromes de dor, manifestações neurológicas e síndromes
neuropsiquiátricas.
A mais conhecida das respostas inflamatórias associadas à COVID-19 é a
chamada “tempestade de citocinas”, que consiste, basicamente, na liberação
aumentada de moléculas responsáveis por avisar o sistema imune sobre a
necessidade de enviar mais células de defesa ao local da infecção (citocinas),
desencadeando uma resposta inflamatória exacerbada e a desregulação de outros
sistemas de sinalização. Fora a tempestade de citocinas, há também a
hiperativação de macrófagos – células que promovem a produção de
autoanticorpos.
O que vem primeiro?
Os autores do artigo ainda não estão certos sobre o que vem primeiro: o
agravo da COVID-19 ou o aumento dos níveis de autoanticorpos. “Analisamos esses
dois sentidos em termos estatísticos e acreditamos que os dois eventos ocorrem
de forma mútua e bidirecional. Os autoanticorpos, em conjunto com outras
moléculas imunes, podem interagir em uma rede altamente complexa subjacente a
processos imunopatológicos em pacientes com COVID-19 grave ou podem ser
potencializados por condições de saúde associadas ao envelhecimento e levar ao
desenvolvimento de doença grave”, explica Fonseca.
O pesquisador ressalta que a forma grave da infecção promove no
organismo um ambiente com lesão tecidual (síndrome do desconforto respiratório
agudo), tempestade de citocinas e hiperativação de macrófagos que viabiliza a
produção de autoanticorpos. Por outro lado, o contexto da doença pode permitir
que os autoanticorpos atuem sinergicamente com múltiplos metabólitos, citocinas
e quimiocinas – naturalmente desregulados em pacientes idosos –, além do
progressivo declínio da função imunológica causado pela idade, resultando no
aumento da suscetibilidade a infecções e doenças autoimunes.
O estudo Severe COVID-19 patients exhibit elevated levels of autoantibodies targeting cardiolipin and platelet glycoprotein with age: a systems biology approach pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41514-023-00118-0.
Maria Fernanda ZieglerAgência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/covid-19-pode-disparar-anticorpos-ligados-a-doencas-autoimunes-causando-trombose-e-outras-complicacoes/44660
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