Usando técnica de
sequenciamento de células únicas, foi possível caracterizar os diferentes tipos
celulares presentes na lesão cerebral. Resultado abre caminho para tratamentos
específicos contra a displasia cortical focalNeurônios dismórficos (à esquerda) e células em formato de balão
(à direita) estão associados à displasia cortical focal
(imagens: BRAINN/Unicamp)
Utilizando
uma técnica de sequenciamento de células únicas, pesquisadores brasileiros
construíram o primeiro atlas celular da displasia cortical focal (DCF) – uma
malformação do córtex cerebral que leva à epilepsia resistente a medicamentos.
Esses casos são registrados principalmente em crianças e adolescentes,
respondendo por até 50% das cirurgias de epilepsia nessa faixa etária.
Com o atlas foi possível
caracterizar os diferentes tipos de células presentes na lesão cerebral,
determinando quais estão envolvidas na doença. O resultado abre caminhos para o
desenvolvimento de novos tratamentos específicos voltados a esse tipo de
displasia.
Até hoje os mecanismos
moleculares responsáveis por crises de epilepsia em pacientes com DCF são pouco
compreendidos. Pessoas com casos graves chegam a ter entre 40 e 50 crises por
dia, com perda de sentido e queda. Quando os medicamentos são ineficazes para
controlá-las, a opção é a cirurgia, que também pode acarretar riscos, como
sequelas na visão, audição e fala.
Em estudo publicado na
revista iScience, os pesquisadores conseguiram mapear em resolução
celular tanto as alterações transcrionais – envolvidas no processo de
conversão do DNA em RNA mensageiro (a “receita” para a produção de proteínas) –
quanto epigenéticas (modificam a expressão gênica por meio de processos
bioquímicos, sem alterar a sequência do DNA). Esses mecanismos regulam a forma
como os genes são ativados ou desativados para produzir proteínas e outras
moléculas funcionais, a chamada expressão gênica.
Além disso, o estudo apontou
subpopulações de neurônios, micróglias e astrócitos envolvidas na doença. Esse
conjunto de células forma o córtex cerebral e garante o funcionamento, a
proteção e a adaptação do sistema nervoso.
A pesquisa identificou uma
população neuronal específica nos
pacientes com DCF caracterizada pela expressão do neurofilamento NEFM+ (uma
proteína neural), que engloba os chamados neurônios dismórficos. Eles são
células anormais encontradas no córtex desses pacientes, responsáveis pelas
sinapses alteradas e causam as crises epilépticas.
Já em relação às micróglias
(células do sistema imune localizadas no cérebro) foram descobertas duas
subpopulações, denominadas CD74+ e CD83+. Elas podem estar ligadas à
ativação do sistema imunológico e à neuroinflamação.
“Utilizando uma técnica
avançada de gênomica, obtivemos uma visão em nível celular e, portanto,
extremamente detalhada dessa malformação do cérebro. Identificamos profundas
alterações celulares no córtex desses pacientes, incluindo a perda de neurônios
nas camadas superiores, além de astrócitos imaturos e populações de micróglias
expandidas nas lesões e associadas à inflamação. Esse atlas celular é de grande
importância para entender os mecanismos e buscar terapias específicas, podendo
ter como alvo as células identificadas”, explica à Agência FAPESP o
biólogo computacional Diogo Veiga, autor
correspondente do artigo.
Pesquisador da Faculdade de
Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), Veiga
integra a equipe do Instituto Brasileiro de
Neurociência e Neurotecnologia (BRAINN),
um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) financiado pela FAPESP.
No trabalho, iniciado em 2021,
o grupo gerou um conjunto de dados compreendendo 61.525 células únicas de 11
amostras clínicas de lesões de displasia cortical focal obtidas de pacientes
submetidos a cirurgias e de controles. O sequenciamento de célula única (single-cell)
é uma técnica avançada de biologia molecular e permite a análise do material
genético (DNA ou RNA) individualmente, proporcionando uma visão detalhada da
heterogeneidade celular e revelando características muito mais específicas das
lesões estudadas.
Um dos desafios foi analisar a
quantidade de dados. “Passamos um bom tempo desenvolvendo o workflow computacional
e testando diferentes abordagens para conseguir identificar estas subpopulações
associadas à doença”, diz Veiga, que destaca a contribuição de sua orientanda
de doutorado Isabella Cotta Galvão,
primeira autora do artigo.
O trabalho foi apresentado em
eventos nacionais e internacionais, entre eles no simpósio Human Cell Atlas
Latin America, realizado em julho de 2024, envolvendo
pesquisadores na área de genômica de células únicas.
Para ampliar o conhecimento
sobre o tema no Brasil, as pesquisadoras Iscia Lopes-Cendes e Jaqueline Geraldis,
ambas da FCM-Unicamp e autoras do artigo, organizaram em novembro último o
evento Single-Cell Omic Fusion: Navigating Spatial Omics in Biomedical
Research. O workshop marcou o lançamento da Single-Cell e Spatial
Omics Brasil, uma comunidade científica dedicada a
fomentar a colaboração e o avanço desse campo no país.
Doença neurológica sem cura, a
epilepsia afeta cerca de 50 milhões de pessoas no mundo, segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS). Estima-se que no Brasil sejam 2 milhões de registros.
No ano passado, o maior estudo já publicado sobre o assunto no mundo revelou
uma espécie de “arquitetura genética” da doença, identificando 26 áreas do
genoma ligadas ao distúrbio. O Brasil foi o único representante da América
Latina por meio do BRAINN (leia mais em: agencia.fapesp.br/44960).
Próximas
fases
Os resultados do estudo foram
incluídos no banco de dados celular CellxGene,
que faz parte do consórcio Human Cell Atlas. Criado em 2016, o consórcio tem mais
de 3 mil integrantes em 99 países, reunindo biólogos, clínicos, tecnólogos, físicos,
cientistas computacionais, engenheiros de software e matemáticos.
Com isso, outros grupos podem
aproveitar esses dados em suas pesquisas e tentar encontrar tratamentos mais
direcionados à displasia cortical focal. “Esse tipo de compartilhamento de dados
é hoje essencial para acelerar o avanço das pesquisas médicas. Estamos
disponibilizando dados gerados com dinheiro público, retornando o investimento
da sociedade para benefício de todos”, afirma Lopes-Cendes.
Segundo Veiga, seu grupo está
agora usando a mesma técnica de célula única para estudar o desenvolvimento do
cérebro infantil, além de um outro tipo de displasia, com o objetivo de
detectar eventuais similaridades.
A pesquisa também recebeu apoio
da FAPESP por meio de outros quatro projetos (19/07382-2; 22/01530-2; 20/06168-4; 19/08259-0).
O artigo Multimodal
single-cell profiling reveals neuronal vulnerability and pathological cell
states in focal cortical dysplasia pode ser lido em www.cell.com/iscience/fulltext/S2589-0042%2824%2902562-8.
Luciana Constantino
Agência FAPESP
https://agencia.fapesp.br/pesquisadores-brasileiros-criam-atlas-celular-para-malformacao-do-cerebro-associada-a-epilepsia-grave/53769
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