O Brasil possui hoje quase 71.000 mandatários eleitos pelo voto popular. Além do presidente e do vice-presidente, temos 54 governadores e respectivos vices, 81 senadores, 513 deputados federais, 1.059 deputados estaduais e distritais, 11.036 nos cargos executivos municipais (prefeitos e vice-prefeitos) e 58.208 vereadores. Ou, exatamente, 70.953 ocupantes de cargos públicos escolhidos nas urnas.
Nomeados para tocar a máquina pública na União, nos
Estados e nos Municípios, temos ainda 67.930 pessoas. São 37 ministros de
Estado e igual número de secretários executivos, 540 secretários estaduais e
secretários-adjuntos; outros 66.816 secretários municipais,
secretários-adjuntos ou secretários executivos ou diretores com status de
secretário, e ainda mais 500 presidentes, diretores e conselheiros de empresas
estatais.
No total, são 138.883 pessoas recebendo polpudas
remunerações, pagas com dinheiro público. Para se ter uma noção da
grandiosidade desse número, basta constatar que apenas 319 dos 5.568 municípios
brasileiros têm população superior a 100.000 habitantes, de acordo com o mais
recente Censo do IBGE.
É claro que tal número é resultado do sistema
democrático que vivemos no Brasil. Entretanto, tal magnitude nos leva a algumas
reflexões. Uma delas deriva do fato de que a disputa a esses cargos foi
superior a 210.000 candidatos, ou seja, três vezes mais que o número de
eleitos. E todos esses postulantes tiveram suas candidaturas custeadas com
recursos públicos, conforme manda a lei, por meio dos recursos bilionários dos
fundos partidário e eleitoral (R$ 4,9 bilhões em 2022).
Quais as razões para tamanho interesse por cargos
eletivos, reunindo mais de 210.000 candidatos? Patriotismo? Brasilidade?
Vocação? Solidariedade com os mais necessitados? Claro que não, salvo um
pequeno número de brasileiros que realmente acreditam na política como forma de
melhorar o país. Exceções das exceções.
Não é antipatriótico, antidemocrático nem
antipolítico supor que a enorme maioria é movida pelo singular desejo de
conquistar, pelo voto, um emprego estável por quatro anos, com remuneração
equivalente ou superior àquela recebida pelas pessoas que pertencem ao 1% da
população mais rica do país. E tudo isso sem nenhum investimento financeiro
próprio, já que suas campanhas são financiadas com o dinheiro dos impostos
pagos pelos eleitores.
Às custas de milhões de brasileiros que sofrem para
pagar as próprias contas, numa vida repleta de dificuldades, esses eleitos
ainda gozam de outros privilégios: ganham o direito de nomear um considerável
número de assessores, dispõem de carro oficial com motorista (com combustível e
pedágios pagos pelo erário), usufruem dos melhores planos de saúde extensivos
aos membros da família, e, muitas vezes, se beneficiam de polpudas e precoces
aposentadorias.
Chamados de “autoridades”, esses cidadãos também
desfrutam de poder de mando, tendo em mãos a gestão anual de cifras públicas
milionárias.
Não é de se estranhar, portanto, que a atividade
política no Brasil tenha se desvirtuado a ponto de se transformar em modo de
vida. O país está repleto de políticos profissionais que criam verdadeiros
feudos eleitorais e, no final da carreira, transferem seus votos para os
filhos, irmãos, esposas ou netos. Os exemplos de famílias que se perpetuam no
poder são muitos na história brasileira.
Sem dúvida, a atividade política é importante e
essencial à democracia, porém não mais, por exemplo, que a profissão de
professor, nem por isso devidamente reconhecida pelos mandatários.
Tal situação gera a reflexão da razão de tantos
privilégios, garantidos até mesmo àqueles que não exercem seus cargos públicos
com dignidade e probidade e que, acusados de crimes como corrupção, lavagem de
dinheiro e outros crimes tipificados no Código Penal, recebem tratamento
diferenciado em razão do foro privilegiado, que lhes garante julgamento perante
os tribunais superiores.
Era para ser exceção, quando esse instituto foi
criado na Monarquia. Porém banalizou-se na República e se estendeu a cerca de
60.000 ocupantes de cargos públicos. Em pleno século XXI, portanto, o Brasil
tem 60.000 monarcas em plena República.
São tantos os privilégios – em contínua expansão –
que chega a ser uma afronta aos 203 milhões de brasileiros comuns. Exemplo
recente desse descalabro é o projeto em tramitação no Congresso Nacional
anistiando todos os partidos políticos que violaram a legislação no uso
dos recursos públicos do Fundo Eleitoral. Em outras palavras: a lei votada e
aprovada pelo próprio Congresso é desrespeitada e então se vota uma anistia
prevendo, além de tudo, retroatividade.
Parece que o país regrediu a 1534, quando o rei
João III estabeleceu as Capitanias Hereditárias como medida real de colonização
do Brasil pelos portugueses. Um sistema no qual os donatários podiam tudo e aos
vassalos eram reservadas apenas obrigações.
Essa realidade precisa mudar, para o bem do Brasil.
É urgente reduzir drasticamente os privilégios, a começar pela limitação do
foro privilegiado apenas aos chefes dos três poderes. Outra medida necessária é
tornar imprescritíveis os crimes praticados contra a administração pública,
como forma de reduzir a impunidade que hoje serve de estímulo aos maus
políticos e semeia entre os cidadãos honestos a sensação de que o crime
compensa.
Sem isso, será impossível minimizar as brutais
desigualdades regionais e sociais e criar na população expectativa favorável à
melhoria dos serviços públicos essenciais como saúde, educação, saneamento
básico, segurança e habitação.
Vale lembrar o que escreveu o filósofo Nicolau
Maquiavel (1469-1525) no século XV: “Um povo que aceita passivamente a
corrupção e os corruptos não merece a liberdade, merece a escravidão. Um país
cujas leis são lenientes e beneficiam bandidos não tem vocação para a
liberdade. Seu povo é escravo por natureza”.
Algo tão antigo e, ao mesmo tempo, tão atual,
merece nossa reflexão. Que seja um despertar para o Brasil romper
definitivamente com a escravidão.
Samuel Hanan - engenheiro, com especialização nas
áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário e foi
vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros “Brasil, um país à
deriva” e “Caminhos para um país sem rumo”. https://samuelhanan.com.br
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